sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

quê esperar de um natal?

O melhor dos meus natais é o que eu, antes, detestava. Coisa de adolescente inquieta: irritar-se por voltar pra casa bem antes dos amigos – mesmo sem saber se eles já não estão dormindo há horas em suas casas – e, pior, antes do final dos especiais de natal da tevê. Cansada por ter acordado cedo e corrido o dia todo, incomodada com a roupa ‘arrumada’, mas sem coragem de tirá-la, porque “vai que aparece um convite de festa repentino pra salvar a noite?”. Suposições no beiral da janela, ao olhar as luzes das janelas vizinhas mescladas aos vestígios de sons comemorativos diversos – de ruídos de talheres a miados de cães ou latidos de gatos. Aquelas luzes, aquele clima de festa comigo de fora batendo na incerteza de “quem sou eu?” e “por que (não) me encaixo neste quarto?”. Inveja fora de lugar que, na verdade, camufla agitações internas.
Hoje, não. Chego mais tarde, mas ainda mais cedo que o final das festas na vizinhança. E o burburinho não me incomoda mais. Não estou mais “só”, mesmo quando apenas comigo. Meus dilemas internos estão longe de terminar, mas tenho segurança quanto a minha identidade, meus quereres e deveres e do por que me encontro em determinados lugares – amanhã, não sei, mas as coisas costumam fazer sentido no momento em que acontecem. Assim, ficamos matutando, eu comigo, estórias por trás de cada luz e de cada sala acesa enquanto a minha está apagada. Porque já desmascarei o mito do natal vendido em lojas, as caras felizes, as festas forçadas. Se houver vontade de festa, correremos atrás de uma, invadiremos a do vizinho, inventaremos outra, na rua ou na sala. Se o clima for de chuva relaxada pós-confraternização, acompanharemos as luzes e os sons perambulantes das redondezas - que, afinal, são a diferença entre o natal e as outras madrugadas do ano.
O gostinho dos meus natais nada tem a ver com a hora em que as festas da minha família acabam, não era isso o que eu detestava. É o clima suavemente frenético dos natais paulistanos que invade as casas de todos sem pedir licença. Isso me irritava por contrastar diretamente com o natal calmo lá de casa que, por sua vez, não combinava com minha agitação interior. Hoje, é desse contraste que mais gosto. Saboreio cada luz ou música perdida no ar a meu gosto no momento – seja ele tranqüilo ou energético – como se as roubasse pra mim, e deixo e que me levem até onde tiverem que levar. Nem sempre é algo pacífico essa relação interior-mundo-lá-fora, mas é nesse conflito que reside o sentido de deixar a realidade bater na própria face tal qual vento que anuncia chuva. As gotas simplesmente vão caindo e quando me dou conta de que é preciso fechar o vidro da janela, percebo também que o natal já passou, sem que fosse preciso esperar nada dele.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

entreciertos y seguros

ciertos días, no me tengo
deambulo en sitios todos
en ninguno me detengo

a girar en quehaceres
sueño cierto con el viento

en mi suerte, ya me pongo
a huir en pasos falsos
y temblar en fijo deseo

así pasa que eso no pasa
pasa a mi y a la vida

como sensación que se quedara
y algo de mi retiñera
tan seguro en tiempo incierto
que no se deambulara

sábado, 13 de dezembro de 2008

pr’um cara aí..

que me ensinou
toda vez que eu desenhava sonhos,
mas chegava com porém’s
ele dizia um certeiro: e daí?

e daí que essa é maior lição que já aprendi na vida
e não foi só de ouvir
porque ele é uma das poucas pessoas que acredita no que diz
e o pratica

(isso tudo além dele ser meu pai)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O mundo me dá alergia

Pedra no sapato contamina o pé, fica tudo vermelhado; vai subindo pelos ossos até explodir em poros cor de rosa, congestionados. Mais congestionado ainda fica o nariz, escorrendo todo, é só puxar o ar do verão molhado. Água de chuva, então, tiro-e-queda, incha os olhos, treme as pernas; se tiver algo que fazer, é preciso secar logo, senão os pés, tremendo, vão correndo sambar lá-longe.

Mas o que me dá alergia mesmo, urticária, descamação – de nem me reconhecer mais – é criança vestida de adulto na rua, trabalhando pra pôr comida a brincar na barriga. E lábios cínicos que despejam eufemismos no mundo, omitindo a conta da lavanderia de dinheiro e de caráter, mau caráter. Apontam-me pintas de catapora na testa, bem no meio, bem visíveis, quase que nem pisca-pisca.

Todos vêem, não consigo disfarçar. Certamente, dizem: “que garota fresca, tudo a incomoda!”. E lhes dou microfones, para que os ouçam mais alto, assim como busco um autofalante pra mim. Que os gritos preencham o céu, cortem os ouvidos certos ou errados. Que se faça barulho. E, de repente, pode ser que a alergia se espalhe, que passe de olho-em-olho, mão-em-mão. Que surja uma bolha na pele pra cada tensão social, que o descaso corrosivo provoque febre crônica.

Não é caso só de reclamação, alegria também causa tosse, felicidade lacrimeja os olhos, conquista explode os ânimos, contato desnorteia a vista. É por isso que saio do samba estampada de cores e de boas reuniões, coçando a cabeça.

Também não é caso de não-me-toques, é sinal de aprofundamento. Alergia não entra em bolha de cristal, só se pega ao pisar descalço na terra. É marca de vida, que reage aos estímulos, que age. Critica, elogia e luta. É a negação da desimportância, é boca no trombone.

Não tomo remédio pra esses sintomas estranhos, deixo que se desenrolem, que se mostrem. O dia em que passar imune por cenas, palavras e cantos, sem irritação de pele sequer, é porque me isolei de tudo, fechei-me num casulo escuro e sem vida. Minha alergia vem da força nas veias que passa das pessoas. É minha sinceridade.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Último poema dele ou Entendimento

*
quando via suas arrelias
- e sempre as achava de ver
era querendo ser torta
De tão reta, que idiota!
Num mundo que não sabia ter
poetado de doiderias

*

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Jornalista sempre em crise

Outro dia, eu, meus colegas de universidade, a professora Maria Elisabete Antonioli e os jornalistas Maurício Tuffani e Pedro Pomar levantávamos polêmicas sobre a exigência ou não do diploma de jornalista para o exercício da profissão no Brasil. Havia defensores das opiniões mais radicalmente opostas e o debate esquentava, excedendo o horário previsto. Quando chegamos ao auge da discussão, no entanto, o assunto não era mais a obrigatoriedade do diploma, mas algo a que chamávamos “habilidades específicas” que um jornalista deve ter.

Percebi, então, que uma dessas “qualidades” só pode ser um certo estado de “crise existencial” permanente. Creio que em nenhuma outra profissão se debata tanto sua razão de ser como no jornalismo. O tema é abordado não apenas em debates como aquele ou nas redações, mas nos próprios veículos produto do trabalho desses profissionais – quem nunca leu um artigo ou editorial questionando a função do jornalismo? No entanto, diferentemente de outras “crises”, a dos jornalistas não atrapalha sua atuação, senão a aprimora.

Como disse Carlos Alberto Di Franco em seu artigo “O fascínio do jornalismo” (publicado na Folha de São Paulo de 3/11/08), “jornalismo não é ciência exata e jornalistas não são autômatos”. Portanto, não é possível listar regras universais para essa atividade. Sendo assim, sua fiscalização deve ser contínua e adaptada a cada caso. Além disso, por se tratar de uma atividade que interfere diretamente na realidade social, esse debate em torno de sua ética não deve se restringir aos profissionais do ramo, mas a toda comunidade.

Não raro, evocam-se aquelas características verdadeiramente heróicas que um jornalista “romântico” teria: imparcialidade, senso investigativo, sem receio de trazer a ‘verdade’ à tona doa a quem doer; tudo isso sob condições de trabalho difíceis e, hoje em dia, salários pífios. Ou seja, o sujeito seria, realmente, excepcional. No entanto, numa época em que jornalismo é, muitas vezes, confundido com a reprodução de declarações prontas, pré-concebidas por um dos lados da história, essa justificativa dos empecilhos impostos ao “profissional da notícia” me parece hipocrisia.

É certo que existem inúmeros obstáculos ao exercício da profissão, dos quais se destacam a imposição da linha editorial dos patrões e de um imediatismo midiático que considera as notícias por sua forma, independente do conteúdo. E, mesmo assim, tem um monte de gente que insiste em seguir essa carreira. Seus desafios são muitos, contudo, é preciso ter cuidado para não os confundir. De nada adianta um comunicador social que evoca as dificuldades de sua atividade, mas conforma-se ou, pior, adere a elas, toma seu partido.

Jornalismo é uma atividade racional que busca objetividade e clareza, no entanto, não pode fugir a sua complexidade, pois deve ser sentido. Nunca será possível delimitá-lo exatamente, mas isso não impede sua realização. É como um bolo feito com uma receita sem quantidades específicas dos ingredientes, apenas sugestões, mas que cresce. Por isso, bons jornalistas estão sempre em “crise”, analisando seu trabalho de acordo com cada contexto. O dia em que artigos de reflexão a respeito desses “dilemas” deixarem de ser publicados, haverá algo de muito errado.

O que me preocupa é a quantidade de questionamentos hipócritas, “só por questionar”, que aparecem por aí, mas não se refletem na atitude dos profissionais. Não é possível eximi-los de culpa, mas deve-se lembrar que jornalistas são seres humanos comuns, não super-heróis incorruptíveis (ainda que desejem muito sê-lo) e que, para garantir que suas reflexões sejam aplicadas na prática, faz-se necessário o envolvimento de toda sociedade nessa cobrança.

domingo, 9 de novembro de 2008

ping-pong

*
________
.lança

esconde-esconde

________pega-pega

zig-zag

________rebate.


________Mas
_____Mas
__Mas
Quais as regras?

________esquecê-las.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Cheque-mate

Precisava dar um basta naquela vida de incompletudes. Não via conclusões havia meses, um ponto final sequer, e novos períodos abrindo-se a torto e a direito. Daria um jeito. Até o final do ano (o prazo dos prazos), terminaria alguma coisa. Um livro, pelo menos – ou então, seu namoro, que acabara de começar.

Perdeu muitas páginas, avoou-se em tempo ínfimo. Tomou a decisão: pela segunda alternativa. A mãe argumentou, a vó ligou, a tia chorou, a amiga desconfiou – mas apoiou. Não se decidira apenas devido ao encasquetamento em finalizar algo, já avistava o fim daquele relacionamento, “entende”?

Explicava-se – mais para si mesma do que para os outros. Aquela história havia sido gasta sem dó, como pano de chão. Não se podia mais espremer gota de drama sequer. Alguém se atreveria? Talvez, ela até quisesse que alguém se atrevesse – alguém, ela, não. Afinal, tal era decisão mais fácil de se tomar. Apesar de um tanto difícil de seguir. Os meios? Sempre tinha que pensar em tudo! (seu torpor e seu êxtase).

Respirou. Contou os dedos das mãos e dos pés. Tudo no lugar. Consultou as casas dos botões, partiu. Chamou o rapaz desavisado para uma volta no parque. (Por que num parque? Vira nos filmes). No meio de uma alameda, começou – assim teria tempo de terminar até o fim, onde cada um seguiria para um lado:

- Sabe (aquela palavra usada para aliviar o soco seco, com certa delicadeza, no caso, sincera), preciso dizer algo que nunca te disse.
- Tem algo ainda? Você diz tantas coisas... – Riu-se Remo, tão desprevenido da situação como avoado da vida.
- Sempre tem algo – Adiou-se – Nunca te disse que te amo. – Só depois da alguns meses parou pra pensar que, naquele momento, não disse “eu te amo”, mas “disse que te amo”.
- E não ama? – Deslizou por entre as partes do sorriso dele.
- Amo! – Exaltou-se, para então... – Amo. E isso basta. – voltou à personagem que encarnara tão resoluta; ele sem entender nada – Por isso, precisamos de um basta. Acabou. – Sentiu o peso dos olhos dele e ensaiou um desespero interno que quase transbordou – Continuaremos amigos... sim! – e voltou a si - Mas acabou.
- Renata, você é maluca! – Encasquetou-se o rapaz; agora era a vez dela fazer cara de espanto. – Por que decide essas coisas do nada? Você é cheia de surtos!
- É que... eu não sabia o que fazer. Eu não sei. Mas não estamos mais em sintonia.
- A gente nunca esteve. – Beliscão que fez os olhos da moça arregalarem-se prontamente – Mas achei que nos entendêssemos...
- Mais ou menos, você não liga muito pra entendimentos, não é o que parece. E eu, que ligo, fico na mão. Fico sozinha nos meus desentendimentos comigo e com você. Chegou uma em hora que era desentendimento demais pra mim.
- É que você liga demais... Eu ligo pra ficar com você, se eu to com você.
- E quando não tá?
- Que que tem?
- Não se faça de cínico.
- Ai, Renata. Não vou ficar me matando de confabular com as estrelas sobre sua falta, não sou assim, me desculpe.
(Uma pausa. Renata passeou os olhos no céu e desceu – já era quase o final da alameda)
- Desculpo. Porque te amo, não sei por quê. Mas não posso voltar atrás, já fiz um pacto com todas as estrelas que você deixou de lado. Por favor, não fique bravo comigo. Quem sabe um dia daremos jeito. – Disse a moça, firme, sem tirar os olhos dos olhos dele que, então, caíram ao chão.
- Tudo bem. Só não entendo. Mas nos vemos, então?
- Sim...
- Aham. – Conformou-se o rapaz.
Enquanto os pés de Renata já apontavam para o lado direito, Remo precipitou-se:
- Tenho que ir para lá. – Voltou-se à direção oposta – Tchau!
- Tchau...

Um olhares. Renata acordou-se do transe cênico e percebeu que ele ia exatamente para onde ela tinha imaginado, acontecia o que havia previsto no “roteiro”. Teve o ímpeto de segui-lo correndo e agarrá-lo para agradecer pelo belo final de cena. Mas já estava meio voltada para o outro lado. Foi quando duvidou se sua ânsia de finalizar havia sido cumprida. (Então era aquilo?) Percebeu que o final era um grande - e imensurável! - começo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Desvario-nos

Foi tudo louco
- demasiado
Cada gesto parecia desligado
um do outro
Foi sem sufoco,
porque era alado
Mas nem sempre fomos lado a lado
mais um no outro
disfarçado

Não me digam que foi pouco
era rouco
Um pecado?
- Apenas decidiu ser descolado
fugidio, não desolado
Menos que quase tudo
Mais que quase nada
Como rima furada
Tão bela musicada

Se era forma ou conteúdo?
- É freqüência
que não cai nem em cadência
De um luz-anoitecer
Ou um lua-ensolarar
É algo aqui e lá
Pro corpo atormentar
e o chão desatinar
até a cabeça

Como loucura de dois
sem um certo depois
Com um cada nuns sims
e sabendo seus nãos
Uma guerra de sãos
num quarto de vãos
Sem qualquer decisão
que se acabe com pois
Desavisado desvario achado

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

enchendO

nada é mais angustiante que garganta vazia
é a materialização de sentimentos abafados
como tremer de frio numa ilha de calor,
o rosto rosado e os pés inchados,
sem conseguir gritar por companhia

é um certo tipo de dor
daqueles gritos atrasados
daquelas tardes sem dia
de conceitos despedaçados
esvaziados de cor

tropeçam em cadeados
os que buscam poesia
em direção ao calor
descobrem valentia
e descolam os calados

longe da monotonia
corta-se o torpor
entre desagrados
e flechas de amor
onde o tédio, inútil, jazia

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

De volta àquela revolta-descoberta adolescente

Você me dava suas mãos
Eu queria seus olhos.

Ah, um ponto final
Sem vírgula embaixo,
Adeus à vírgula sozinha
- Só preciso de um travessão...
Chega de reticências!
Qual é a exclamação
Que acaba com a pergunta?

terça-feira, 16 de setembro de 2008

3ª pessoa(l)

a vida era boa, não podia reclamar
no momento, afligiam-lhe apenas três mistérios:
Como curar língua queimada
De onde vêm as alergias
A geografia do Terminal Tietê

é claro que havia outras questões:
O que ler primeiro
Quais os nomes das horas
Que número discar
De que é feito o samba

mas para estas, desenrolavam-se respostas
Construiriam-se no caminho da vida crua
vestida de seda e véu, só pra brincar

as complicações mesmo eram de sua cuca
Maluca, podia ser, como queira
se de fato queria isso, nem ela sabia

perdida entre mundos e fundos
Muito sonho, pouca gente
Muito mundo, pequeno abraço

quase entra em descompasso
Procurando o que querer
Que é só o que é preciso

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Uno de allá

Algo de perro
Algún porro
Dame un tarro
Ahorro un momento
Le llevo al piso
De grama mohada

Me vuelve un sapo
Dice que no me entiende
Con voz tan grave
Que casi no me oigo
Por dos minutos resisto
A sus ojos de príncipe

Quisiera ahogarme en ellos
Tan completos
Todavía no llenan mi corazón

Todavía es algo raro
Es algo de predicción
Y algo de miedo

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Machos.

Um olhava pro outro sem pousar vista na garota no meio. Mas também não se cruzavam. Dois homens com algo em comum.

Conversavam forçando uma naturalidade fictícia. Se assim ficavam felizes... Ela estava ali, mas se mostrava 'nem ali'. Não mais convincente que as encenações deles.

Divertiam-se? Qual o sentido senão esse? Devia ser algo consumindo o ar do passado, como fagulha restante. Mais parecia vela de festa.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

CUBA (em CUC's*)


Seria muita hipocrisia da minha parte falar de Cuba sem me colocar como mera estrangeira. Uma semana de viagem mais alguns dias avulsos de contato com os assuntos desse país são os únicos retalhos de que disponho para costurar uma imagem ‘cubana’. Mas vamos a eles:

As cores de Cuba explodem como as dessa cortina de retalhos. Sua música, tocada em cada praça ou restaurante, as cadeiras de balanço sempre à postos fora das casas, as roupas estendidas do lado externo das janelas e varandas, os livros sobre traços culturais do país abundantes, ao lado dos postais e chaveiros para turistas. A ilha parece querer gritar seu nome para o mundo.

Nomes são o que falta nas estradas, sem placa de sinalização alguma, querem te conduzir a determinados tesouros históricos ou naturais, mas sem dizer como, somente com a ajuda de um guia local. “Não é preciso fazer sentido, Cuba é Cuba”, disse-me o taxista que nos conduziu até o balneário de Varadero, após ser questionado sobre o porquê da falta de sinalização. Logo depois, parou o carro no meio de uma ponte e nos convidou a descer para assistir dois garotos que resolveram praticar um bungee jumping improvisado, bem na hora em que passávamos por lá.

Surpreendeu-me o ato totalmente espontâneo da parte do motorista. Depois de ver que o aparato de cordas e elásticos tinha segurado bem os meninos e voltar ao carro, pensei em perguntar onde é que estavam os policiais da cidade que deveriam tentar impedir cenas como aquela, mas fui arrebatada pela resposta “Cuba é Cuba” trazida pelo vento na janela do táxi em movimento.

Nesse momento, tive uma impressão da “cara” dos cubanos que me parece válida até agora: eles se mostram como são, seus trejeitos, sotaque e gestos não são montados para atender às regras de conduta ocidentais especiais para o tratamento com turistas; no entanto, não mostram tudo, têm cautela ao expor seu cotidiano e seu país a fundo. É como se houvesse uma grade na frente de suas essências (como a que cerca a cortina de retalhos na foto), uma pintura expressionista que não se pode tocar devido ao vidro da galeria de arte.

Para quem é de fora, não é fácil adentrar na Cuba ‘real’, a dos cubanos. Mesmo vindo da América Latina, a palavra “estrangeiro” está estampada na sua testa. Um brasileiro nas ruas de Havana, com certeza, é mais abordado pela população local do que um americano ou europeu – acredito que seja pela postura mais parecida e pelo idioma. Em geral é assim, você está andando por qualquer parte da capital, quando alguém começa a te acompanhar caminhando e te aborda (traduzindo tudo para o português):

- Oi! Da onde você é?
- Do Brasil!
- Ah, Brasil! Futebol, Ronaldinho!
- Isso mesmo...
- Seu país é lindo!
- Você já foi pra lá?
- Não, mas só pode ser muito lindo! Até quando você fica aqui?
- Só mais uma semana.
- Ah.. E você não tem alguma lembrancinha do seu país?
- Não, não trouxe...
- Então me dá um peso (moeda local)?
- Desculpe, não tenho mais nada aqui.
- Ah, um só? Tenho fome, preciso comprar sabão! (...) Olha, já comprou ‘habanos’ (charutos)? Tenho um irmão que trabalha na loja de fábrica e faz um preço muito bom, muito barato!
- Não, obrigada, preciso ir.
- Já conhece a cidade? Venha, posso te levar para fazer um tour, baratinho!
- Obrigada, mas preciso ir.

Simpatia? Sim, em muitos casos. No entanto, ser abordada mais de vinte vezes por dia ou “xavecada” nas mais diversas situações chega a incomodar, já que você não consegue tirar sua máscara de gringo - ‘espécie’ alvo de temporada de caça onde toda a população parece ser caçadora.

É, a pobreza incomoda, como em qualquer lugar, só que lá não há divisão “rico ou pobre” explícita como nos países capitalistas. Aqui, a maioria dos cubanos seria chamada de mendigos pela pobreza material, mas não mendigos de cultura, já que educação para todos é realidade na terra do Fidel.

(Maiores detalhes sobre a estrutura política cubana ficam para outro post, quando houver mais autoridade para falar sobre isso aqui, já que hoje sou turista).

Bem, falava sobre os diálogos. O curioso é que quando abordei alguns cubanos para pedir informações, as conversas foram extremamente parecidas, salvo algumas exceções. A pessoa que mais esclareceu minhas dúvidas sobre todo e qualquer assunto cubano foi um guia turístico da companhia ‘Cubatur’.

Formado em pedagogia, Roger** lecionou por apenas cinco anos antes de começar a trabalhar com turismo em busca de um padrão de vida um pouco melhor. E ele não é exceção, a grande maioria do pessoal do ramo é formada em outra área – tudo por causa das “propinas” (gorjetas).

Os cubanos estão desestimulados a trabalhar para o Estado. O governo garante educação e saúde de qualidade para todos, uma “ração” para ninguém passar fome e moradia: vive-se mal sem um salário para complementar o almoço, mas vive-se sem estar na miséria. Os funcionários do Estado, agricultores ou professores, por exemplo, ganham tão pouco que muitos preferem não trabalhar ou buscar oportunidades no turismo.

As terras da ilha, com potencial para alimentar mais que a quantidade de seus habitantes, estão ociosas. Os preços dos alimentos sobem nos mercados e, segundo Roger, o povo busca alternativa nos “mercados paralelos”, onde pequenos “proprietários” rurais vendem parte dos alimentos que cultivam para sua subsistência.

Então, no dia 18 de julho,
Raúl Castro anuncia a distribuição de terras ociosas a agricultores, em regime de "usufruto", como medida para a segurança alimentar, e é criticado por abrir demais o regime comunista. Mas Cuba é uma ilha, não mais patrocinada pela Rússia e fortemente prejudicada pelo bloqueio dos Estados Unidos, que precisa se manter e precisa alimentar seu povo; o desenvolvimento da agricultura é urgente.

Falando em abertura...

Este texto foi publicado na Internet, meio de comunicação ao qual a grande maioria dos cubanos não tem acesso. Salvo algumas pessoas que trabalham com turismo, nas raras empresas que possuem um computador com acesso à rede ou alguns “hackers” que conseguem se conectar eventualmente, as informações sobre o país e o mundo chegam ao povo apenas através dos poucos veículos nacionais – com as lentes do governo.

Aliás, ao falar com os cubanos, essa tal “abertura” parece ser uma invenção do exterior, porque todos afirmam veementemente que nada mudou com a “troca” de Fidel por Raúl – pelo menos, nenhuma mudança significativa foi sentida até agora.

O que mudou foi a salsa

E isto é um capítulo à parte na minha pequena aventura cubana. Quem me conhece, com certeza, já ouviu sobre meus “planos” de conhecer um salsero e ir morar numa praia da ilha ao som del Buenavista Social Club noite e dia. Bem que tentei colocá-lo em prática, vasculhando as informações dos cubanos nas ruas e indo a diversos clubes noturnos em busca da salsa – mesmo com meus pais junto, o que foi bem engraçado. Mas, pois é, não foi dessa vez.

O subtítulo é exagerado, não é culpa da salsa, não foi a música que mudou, mas seu espaço e a maneira de bailá-la. Alguns de meus neurônios mais idealistas acreditavam que ainda existiria um lugar onde se pudesse dançar e ouvir a autêntica salsa cubana, com os cubanos – como mostram filmes sobre os anos 50 no país. E mais, pensava numa mistura dos shows de salsa glamurosos – da elite e estrangeiros - daquela época com ambientes descontraídos e simples, ricos de espontaneidade local.

É, acho que confundi um pouco as idéias. Ao ler um daqueles livros sobre salsa junto aos souvenires turísticos, descobri que o “baile de cassino”, que ficou famoso e influenciou salseros do mundo todo, era quase uma instituição social, pois, em geral, dançava-se junto a ‘associações’ de elite nas quais era difícil entrar.

Além do mais, apesar do país estar “isolado” do mundo há quase 50 anos, cultura é algo que muda com as novas gerações, em qualquer situação nacional. E a juventude cubana atual conhece salsa, mas gosta é de “regaetone”. Fora os shows de cabaré pra-gringo-ver, as “Casas de la musica” do Estado, onde cubanos e turistas vão dançar, não têm nada de ambientes acolhedores e com “cara de salsa”, são como baladas da Vila Olímpia, com luz negra, fumaça de cigarro e, pior, prostituição.

Enquanto isso, o pessoal do Buenavista Social Club ainda vivo está em turnê pelo globo ou engaiolado em alguma apresentação pra turistas. E os jovens cubanos passam as madrugadas de verão nas muretas do Malecón (avenida beira-mar que liga os dois extremos de Havana) ao som de muito regaetone. Bem, pensar que todos dançassem salsa a torto e a direito seria o mesmo que imaginar toda a juventude brasileira sambando como passista de escola de samba (o que não deixa de ser uma imagem bonita).

O fato é que depois de tantas surpresas e confirmações – porque por mais que se leia ou se ouça falar a respeito de um lugar, vê-lo ao vivo é sempre diferente –, se tivesse que escolher uma frase pra definir esse complexo país, seria obrigada a concordar com o taxista e primeiro cubano com quem falei e dizer: “Cuba es Cuba, y no hay que explicarlo”.


*Cubanos Convertíveis – moeda, usada principalmente pelos turistas, que pode ser trocada pelo dinheiro de outros países; tem valor próximo ao dólar. Enquanto isso, os pesos cubanos não podem ser cambiados; um CUC vale cerca de 24 pesos cubanos.

**Nome fictício

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Ação

Meus olhos não uso só pra ver,
Queriam ser lente fotográfica
Os ouvidos, amplificadores
A cabeça, papel e tinta
A boca, autofalante
Os sentidos, gente inteira
Cada um, todos juntos
O corpo, no mundo
Os gestos, transformações
no corpo do mundo

Os espíritos sem véus
Tentam velar por outros
Só de não ficarem parados
Já é algo mais que nada
É mais. É muito
É movimento:
A diferença que faz falta,
Que esvazia os vazios,
Que faz

sexta-feira, 11 de julho de 2008

De (s) fazer malas

Odeio. Elas embaçam toda aquela empolgação com a viagem! Porque lembram das preocupações. “Tenho que levar isso, não posso levar aquilo porque posso perder, não posso esquecer daquilo-outro – vai que acontece aquilo lá, né?”.
E, mesmo assim, não consigo ir sem mala. Já disse, em
outro post, como queria fazê-lo; desde então, não o cumpri, foi como uma promessa de final de ano (promessas deveriam ser de começo de ano!).
A verdade é que a mala representa um pacote de segurança (assim já mostrava a boa-e-velha bolsa do Gato Félix). Sobra-me falta de medo de sair poraí, mas a bagagem me lembra que ainda me sinto mais indefesa do que muitos espinhos do mundo. Claro que o incoerente seria se não me sentisse assim.
O inconveniente é que não costumo seguir o tão popular “menos é mais” quanto a malas. Não me importo de carregar mais peso se existe a (remota) possibilidade de realmente precisar de algo a mais. Bem, talvez isso até seja algum tipo de virtude.
O engraçado é que sigo o mesmo “lema” (‘mais é mais?’) em relação às palavras. Exato: às vezes, falo demais (sobre eu mesma, já que sou eu que decido o que é meu ‘segredo’; as palavras dos outros sobre os outros, procuro guardar até segunda ordem).
Mas quer saber de uma coisa? Mesmo sofrendo com conseqüências de algumas falas a mais, não costumo me arrepender delas. Palavras são segurança: quando ditas, provocam efeitos bons ou ruins; já guardadas, não provocam nada, não abrem possibilidades.
Acho que é por isso mesmo que os escritores tanto escrevem. Dá pra notar certa insegurança diante do mundo em muitos deles, que recorrem às letras pra falar sobre ela. É por isso também que, quando não tenho o que dizer, sinto vontade de me afogar em palavras. Prefiro tentar nadar a ficar apenas observando o rio correr.
Mas não sinto a menor vontade de me afogar em malas – então, vim me refugiar nas palavras aqui. E, quem sabe, esse amontoado de letras preste a alguém mais, já que palavras alheias também podem ser abrigo.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Do divã – Caso 1

Relato
Mirabella não sabe ser normal. No sentido de se sentir, simplesmente, normal, entende? Não consegue ficar nem-feliz-nem-triste, só “normal”. Suas emoções são como um pêndulo: hora no alto, hora embaixo, nunca neutras. Subir numa pedrinha no meio da rua pode fazer como que ela se sinta no topo do Monte Everest; tropeçar num buraco, pode deixá-la como na areia movediça. Quando se estabiliza, ou é no alto, ou embaixo. Assim, seu “estabilizada” não quer dizer “estável”, razoável, médio ou normal. Descobriu que obedece à lei da gravidade, mas em dois sentidos: tudo o que sobe, desce; tudo o que desce, sobe.

Em uma semana especialmente cheia de pedras e buracos, nauseou-se com os sobressaltos e decidiu mudar. Gastou dias inteiros estudando cada artigo daquela lei pra achar uma exceção. Subiu e desceu as escadarias de muitas bibliotecas. Até que jogou os papéis da pesquisa do último andar de uma delas. “Tudo o que sobe, desce”. E os papéis foram pegos pelo vento, subiram, ainda mais, pelo céu da cidade. Alguns foram encontrados na grama do parque, outros devem ter se enroscado em algumas nuvens. Talvez caiam com a próxima chuva e alguém possa retomar a pesquisa. Mirabella desistiu de pesquisar, estava ficando enjoada com aquele “marasmo”, foi andar de montanha-russa.

Diagnóstico
Não foram encontrados indícios de paranormalidade ou normalidade crônica, apesar das tendências neuróticas. A paciente é perfeitamente anormal.

Profilaxia
É necessário cuidado caso o parque de diversões feche. Evite os feriados vazios e as comidas sem sal.

Tratamento
Duas doses de pimenta ao dia são indicadas para manter as taxas de sanidade
.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Rosas-Vermelhas ou Desabafo

Chegou, foi direto pra dispensa sem olhar em volta; tirou os sapatos, voltou à cozinha, abriu a geladeira, escolheu o leite desnatado dos adultos e o chocolate em pó das crianças. Lembrou-se do copo e da colher, sentou-se, ligou a TV na tentativa de dispersar o silêncio da casa vazia em hora de estar cheia.

O chocolate demorava a dissolver-se no leite, ao contrário de sua atenção, que a televisão não apreendia. Não conseguia se ater nem aos próprios pensamentos. Nada demais; o frio não passara, o trabalho não acabara, o telefone não tocara, ela o vira de longe, ele não se manifestara.

A cabeça zonza melhoraria com a comida. O ventilador ligado por engano quase parava, quase. A louça lavada no escorredor esperava, quase seca. Seria preciso trocar a água das flores? Vermelhas, estavam tão vermelhas, até demais, e ainda eram rosas. Aquelas flores destoavam do resto da cozinha e pinicavam seu ego mal-dormido.

Haviam sido entregues no shopping, estratégia de marketing pro Dia das Mães que derreteria os corações femininos, todos eles. Nenhum motivo especial para sua presença ali, não eram presente de nenhum remetente de fato. Nada, e tão belas! Chegavam a provocar um mal estar.

O chocolate não se dissolvia, a TV não conversava, o frio não cessava, e aquelas rosas enfeitavam, deveriam alegrar o ambiente. Mas elas evocavam lembranças nunca concretizadas, promessas abortadas. Transtornavam-na. Começou a sentir raiva daquelas rosas – canalizando seu descontentamento em algo específico e material. Maldisse a beleza do contorno das pétalas, que não adornavam os dias medíocres.

Desistiu do leite que não dissolvia, bateu a colher com força na mesa, mas o barulho foi abafado pela toalha. Levantou, caminhou, pé-antepé, até as flores no copo, vaso improvisado sobre a pia. Respirou.

Os músculos da mão direita endureceram; agarrou as três rosas e tacou-as pela janela, com tanta força que todas as pétalas se desprenderam no ar. Gritou. Não ligou pra gota de sangue provocada por um espinho; observou a chuva de pétalas planando até o chão, lá embaixo, fazendo um lindo balé no ar. Riu, de gargalhar.

sábado, 21 de junho de 2008

Goteira

Tem um furo no teto do meu quarto que não pára de gotejar tempo. Um tempo todo entrecortado e irregular, que cai antes que eu consiga alcançá-lo e molha tudo à volta, nem adianta colocar balde embaixo. Quando passo por ali, às vezes sempre saio encharcada de tempo, escorrendo até os pés, escorregando.
São gotas de anseios, de dúvidas, idéias, fomes e calmarias inquietas. Elas secam rápido, e logo voltam a molhar. É um tempo estranho, louco e meu, do mundo, talvez.
Não sei onde se acha tempo em conta-gotas, iguaizinhas, cada uma com 5 ml. Tão padronizadas; totalmente fora do padrão da vida. Tempismos certeiros para serem engolidos de uma vez, sem desperdiço, supondo-se muito eficientes. Do tipo que teria a consideração de não morrer atropelado no meio da rua para não atrapalhar o trânsito.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Ri

o melhor sorriso de todos
é aquele que a-con-te-ce
de cantinho
vai surgindo devagar

é um estalo
de um borbulho interno
que roça a superfície
de leve

é aquele que se percebe só depois de um tempo
porque não interrompe o êxtase da alma

se felicidade pudesse ser definida,
seria descrita assim

quinta-feira, 29 de maio de 2008

gente

- Sabe de qual gosto eu mais gosto?
- Gosto de mel!
- Não, muito doce...
- Gosto de sal!
- Muito seco...
- Chocolate!
- Enjoativo...
- Chiclete?
- Artificial...
- De quê então?
- Gosto de gente!
- Você é canibal?
- Não, é que gente tem gosto de gostar.
- Como assim?
- Você gosta de alguém?
- Ah, gosto de você...
- Então, que gosto que eu tenho?
- Não sei, nunca te coloquei na boca.
- Mas você não usou a palavra gosto?
- Gosto não, gosto.
- Menino, quanto calça o pé da letra?
- Mas letra não tem pé. Isso não faz sentido.
- E a vida, faz?
- Ainda não descobriram o sentido da vida.
- Você gostaria de procurar?
- Mas que gosto será que tem?
- Sabia que um dia você ia me entender!
- Eu não entendi, só peguei gosto!

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Lembrete.

Ainda escrevo um livro sobre as conversas dos outros que ouço por aí, sem contextos e sem identificações. Só causos fluindo nas ondas sonoras e esbarrando em ouvidos aleatórios. Uns pinicam, outros fazem cócegas. Há ainda aqueles que germinam romances inteiros nas cabeças atingidas de raspão. A verdade é que a maioria das pessoas faz brotar verdadeiros contos de pequenos pontos, como marias-sem-vergonha no campo.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

A cidade

É uma colina, a cidade, nunca antes tinha reparado, mas lá de cima dava pra ver. Só se percebe que se está em cima quando se olha pra baixo. Um morro sem vegetação, tão cheio de construções complexas, e tão vazio, quase deserto. Só se enche quando a vista molhada de emocional aconchego turva as luzes dos prédios, desfaz janelinhas e as mistura em pinceladas de tinta a óleo. Daria até pra escorregar do morro, sem nem precisar de papelão como na grama do sítio. O rio da Paulista abastece a superfície da cidade fértil, como horta em jardins caseiros.

Tem até vento de paisagem – paisagem de fotografia, não de pintura. Ventania de dias, de horas, não de estações de colheita. Tempismos de cidade, que mudam com as batidas dos corações dos transeuntes, mesmo sem trânsito, que estremecem o chão até quando debaixo, no metrô.

A metrópole é abastecida de lava de gente, suor, energia, saliva: tudo transborda e se absorve, nunca se tem certeza completa. Se um espirro virou prédio, farolete ou lágrima na próxima estação; ou se fez cócegas nos vidros eriçados de ar condicionado a abrirem em sorrisos de floreiras improvisadas.

Edifícios metamórficos subidos de estruturas ígneas de leva quente, canalizada até chegar nas torneiras tagarelas. Tudo fala, palavras que salpicam e empesteiam tudo com o vento desavisado de convite pra entrar. Encobre tudo, depois voa, aos poucos, alguns ficam, sedimentos. Mas cidade que não vira petróleo, não dá tempo, consome-se antes, ela mesma.

Queria ser total-flex, mas é um pouco conservadora nas calçadas, bueiros e recuos. Já foi rasgada, laceada, aceita a diferença, mas nem todas as ruas são rios, ainda há vielas estreitas, quadradinhas, difíceis de se passar – é tudo pra formar padrão de estampa, desenho, charme, identidade.

É como um tecido, dobrável, voável, enrugável, mutável. Mas de estampa, definida. É certo nas suas descertezas corriqueiras, faceiras como o véu da moça despontando no corredor, pra depois sumir na neblina da alma da urbe, esvoaçada.

As almas que vivem aqui são todas líricas, pra poder esgueirar-se pelas retidões cubiculares do concreto, volatescentes, voláteis, fosforescentes, caleidoscópicas.

Imagine que há até lugar pra amor, e pra desespero, que fica preso no vácuo dos ralos estúpidos, é desespero de ver-se sem ar citadino, que já tem o ritmo dos pulmões sem nem precisar estar atento a ele.

É numa loteria que os amigos se espalham pelos bairros como ping-pong. Longe é preguiça de coração, quando cabeça está nuvem de fumaça, turbilhão, confunde sensos.

Não existe lugar pra “para”, só nas placas de “Pare”; de resto, transmutam-se em ‘pras’, preás andantes de bocas em rimas pra cima e pra baixo, pelos ouvidos da cidade, sem parar.

A lua desponta pra lembrar onde é o topo da colina, pra pensamentos flutuarem até pingar no teto-força, que força reunir tudo sem se esforçar. E não é hábito de aglomerar, é cabeça detalhe em multidão, exceções ambulantes.

Só aqui fôlego nasce do fogo, sol se põe de manhã, chuva molha pra cima, noite propaga-se do meio-dia. É gente, é tempo sem espaço, espaço destempado. Compasso de tudo um pouco sem ficar com ritmo de nada. É que se ganha nos degraus de dias latentes de cada mastigada de vigor corrente nas veias de lá – que, incrivelmente, é aqui também.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

salpicoS'

Me distraio com gostos
Durante o tédio
Sempre um chiclete na boca

Não sou focada
Os focos dispersam as pessoas
Nós somos informes
Somos os embaçados
Num mundo de múltiplos enfoques

Quanto mais se foca, mais se dispersa
Se distrai, se diverte
Eu me divirto, entre outros detalhes,
Com gostos

O mundo é muito saboroso pra passar sem sal nem açúcar
Por isso, as pimentas!

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Síndrome do tédio frenético

Mais uma anomalia moderna. Atenção, pesquisadores de curiosidades (ir)relevantes de plantão! Hey, vendedores de tratamentos cura-tudo! Eu sou anormal, venham me entrevistar, achem um antídoto, façam um levantamento de pessoas com a mesma síndrome em relação ao total da população psiquicamente saudável de Plutão! O mundo não pode ficar por fora, é preciso informar o povo, é preciso escrever livros de auto-ajuda (quem sabe, até criar um Centro de Tediosos Frenéticos Anônimos ou chamar o Mc Marcinho, a Amy Winehouse e os ressuscitados Backstreet Boys pra gravar uma música composta pelo Tiririca cuja venda do single será revertida em prol do crescente número de acometidos pela anomalia... Ah, sim e, cuidado, você pode ser o próximo, não esqueça de virar os vasos da sua casa de ponta cabeça para que não se acumule água)!

Sindromis tediosus-freneticusis sapiens-não-sapiens: Distúrbio crônico do lóbulo de entretenimento cerebral que pode causar o inchamento do departamento de elaboração de abobrinhas mentais do córtex frontal.

Sintomas: Sentimento de tédio em 90% das atividades realizadas ao longo dos dias (sejam dias úteis, finais de semana ou feriados), mesmo quando essas atividades excedem a carga horária média para um ser humano moderno normal. Falta de surpresa e empolgação com eventos considerados super-fantásticos. Confusão quanto a planos futuros. Ofuscamento do passado. Excessivo trabalho mental de pensamento megalomaníaco em tudo, todos e todas as possibilidades possíveis e inimagináveis.

Causas: Ainda não se sabe ao certo, mas cobaias apresentaram pró-atividade 85% acima dos níveis normais verificados em formigas saturnianas saudáveis, preocupação 30% maior que a de mães em dias de chuva e vento, inquietude 25% maior que a de homens em shoppings, intensidade emocional 97% mais intensa do que a provocada pela exposição a sete horas seguidas de barracos do programa do Ratinho e novelas mexicanas.

Tratamento: Desaceleração da velocidade da luz, doses de 50 mg de chocolate meio-amargo 12 vezes ao dia, 10 horas semanais de trabalho voluntário, destensionamento do lóbulo de preocupações inúteis por meio de doses de risadas com amigos, amaciamento do córtex ocular de diversão imposta por meio do assopramento de dentes-de-leão de calçadas silvestres, aplicação do método da martelada na cabeça cada vez que o paciente disser “acho que estou ficando neurótico”, escrever textos como este em pleno horário de trabalho, desligar o computador, ligar para um amigo, tomar sorvete com caldas coloridas, dormir no sofá, falar consigo mesmo, olhar as estrelas.

Ao persistirem os sintomas, fale com o seu cachorro, eu falaria.*



*Quem não tem cão, caça com gato, galinha, iguana, borboleta, ácaro, centopéia ou ornitorrinco.**

**O Ministério da Saúde adverte: falar sozinho causa constrangimento hilário; não acredite em tudo o que você lê na internet (leu bem?).

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O SURTOO

h
ah
aah
aaah
aaaah
aaaaah
aaaaaah
aaaaaaah
aaaaaaaah
aaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaahahahahahahahahaha
hahahahahahahahah
hahahahahahahhahahahahhaha
huahauhauhauhauahuahauahuah
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAA

H

h

hh


pa
ss
oooou!


h
.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Nas condições ideais de temperatura e pressão

Preto no branco não tem borrão
e tudo tem uma explicação
Céu não tem cinza
Sim não tem não
Choro é de lágrima
Sorriso é de dente
Alegre é contente
Maçã é pecado
Cruz é redenção
Criança brinca
Adulto trabalha
Ponto final não é vírgula
Interrogação não exclama
Nada importa
porque não existe
E é tudo uma grande chatice

domingo, 13 de abril de 2008

A pesada leveza do não ser


Que só pesa porque somos e não podemos tê-la.

E o ventou levou: memórias como um bumerangue, mas trouxe de volta diferente, vem com a gente:

Por que deveríamos lembrar de certas datas ‘mais importantes’? Por exemplo, por que eu deveria lembrar da primeira vez em que o vi? Instante banal na profundeza do tempo. Pode ser que não fosse banal, mas não lembro - minha memória deve ter achado desimportante, ou só esquecido mesmo. Em vez, disso, lembro de quando o vi uns cinco anos depois daquela vez primeira. E foi uma visão certeira:

Ele estava da mesma altura, mesmo corte de cabelo, mas mais barbudo. Os olhos atrás dos óculos que antes eram só pra leitura. Pastas nas mãos mais maduras, que não carregavam trabalhos de escola como antes, mas pepinos de trabalho e idéias futuras. Só que a água dos cabelos molhados de chuva salpicava uma aura de descontração juvenil que era a graça sempre dele. Do que eu sempre gostei, que me ataca, de vez em sempre quando lembro de alguns momentos, às vezes. Então, naquela exata não sei qual vez que o vi, tive certeza de que era amor à primeira vista. Só podia ser e só podia ter sido.

Mas já que tudo é questão de duração, senti que dali a uns sete minutos, não seria mais. Que importava? Que importa? Talvez nem fosse ou tivesse sido. O fato é que só podia ser assim – amor desde a primeira vista - naquele momento, porque tinham ocorrido outras ‘vistas’, pra eu comparar com aquela. E dessa miscelânea inconseqüente, saltou uma recordação latente:

Um episódio qualquer em que tivemos aquela coisa doida de amar pura e adolescentemente. É que eu não preciso lembrar do nosso relacionamento todo de meses a fio pra lembrar de nossa história, posso resumi-la naquele capítulo e pronto. É quase como se criasse várias vidas dentro da minha vida. Naquela, foi assim, foi intenso e era só, só com aquele momento que nos preocupávamos naquela hora. Era aquele o assunto e ponto, uma cena bem-resolvida. Era uma realização. Naquele assunto amoroso-sexual-vivo apenas, mas totalmente. Os outros assuntos não existiam, trabalho, amigos, objetivos, fome, sede, calor, aquecimento global... nada mais tinha a ver conosco ali, só ali. Foi. E não perde a validade hoje nem depois de amanhã.

Claro que não posso resumir uma vida em uma realização, que nada mais é que um momento escolhido como tal. Então, o problema da vida parece mesmo ser duração; mas não ela sozinha, há também outro: multiplicidade. Organizemos essa desordem abstrata: dizia eu que a vida tem vários assuntos, pois bem, geralmente, quando nos realizamos ‘totalmente’ em um tema, há a supressão dos outros, uma separação momentânea que cria um momento infinito. Só que não dá pra escolher simplesmente um único tema, a vida nos joga eles múltiplos e nos preocupamos ora com um, ora com outro.

Então, ora eu diria que a felicidade da minha vida poderia ser resumida naquela realização amorosa, ora, felicidade seria uma roda de samba, outro dia, a conclusão de um trabalho, noutro a própria realização de uma atividade no dia-a-dia. Pode ser ainda abrir a janela e sentir o sol da manhã, saborear a comida das avós, tagarelar com os amigos por horas, dizer o que se pensa sem medo, lutar por uma causa, querer só ficar deitado na rede, pular de um morro pro outro, sentir o vento da chuva e o cheiro da grama. Viver é isso. E ‘isso’ é felicitar, ser feliz, felicidade, felizmente, com a participação de tristezas, incertezas, melancolias e alegrias.

Portanto, ciclicamente, chegamos à conclusão de que duração e multiplicidade não são apenas problemas da vida, são como sua condição. Já dizia o óvulo, que sem outro diferente, o espermatozóide, não se multiplicaria pra durar um tempo e ter momentos eternos.

Num momento, a gente pode ser leve, quase como se não fosse. E juntando esses momentos, que também são memórias, que não são mais, são não-seres, é que a gente é, pra sempre – e, ao mesmo tempo, multiplamente, não somos.

sábado, 5 de abril de 2008

Atutab Egroj

I

Jorge Batuta nasceu ao contrário. Chutava tanto a barriga da mãe que tentaram fazê-lo sair antes do tempo. Mas Jorge já era do contra antes mesmo de se conhecer por gente e ficou enrolando até dois dias depois do período máximo de uma gestação. O parto por cesariana estava marcado, mas aí foi ele que cansou de esperar e quis sair do seu jeito. Escorregou primeiro as pernas, depois a cabeça e quase escapou do colo do médico estupefato. Agüentou a dor e o susto das palmadas de ponta-cabeça e só começou a chorar quando foi abraçado confortavelmente pela mãe.

O mundo lhe parecia todo errado, a começar pelas pessoas e sua mania de andar com os pés no chão. Então aprendeu primeiro a plantar bananeira – imagine um bebê de dois anos de idade andando pela casa de cabeça pra baixo, apoiado nas mãos.

Mãe é sempre mãe, até quando o filho é do contra, por isso Marizete desconversava quando mencionavam as anormalidades do pequeno Jorge. A dona de casa e costureira nas horas vagas dizia que a criança havia herdado o dom do falecido avô, que trabalhara alguns anos no circo – só não mencionava que sua ocupação fora a de motorista do caminhão que levava a lona e o picadeiro, o que não requer nenhuma habilidade circense.

Seu Arlindo, o pai, preocupava-se especialmente com o momento de colocar o Batutinha nas escola. Se a família acostumara-se ao comportamento peculiar do garoto, as outras crianças de outras famílias provavelmente não se adaptariam facilmente. Quando chegou o inadiável primeiro dia de aula, Arlindo Batuta apresentou-se à sala de aula do filho duas horas antes do horário normal para uma conversa muito séria com a professora. Era preciso avisá-la das manias de seu filho, pedindo-lhe paciência extra com a criança, além de garantir que estaria à disposição para reuniões de pais e mestres sempre que necessário – afinal, não queria confusões que tirassem a bolsa de estudos do menino em uma das melhores renomadas escolas do país, que a empresa de calçados na qual trabalhava oferecia somente aos melhores e mais obedientes funcionários.

Sandrinha Solene levou um susto ao deparar-se com uma grande mão de operário oferecendo-lhe uma bela maçã vermelha, antes mesmo de poder alcançar sua mesa na sala 402. Soltou um gritinho atrapalhado que lhe arrepiou levemente os cabelos ruivos, compridos e ondulados na mesma medida em que acelerou o coração politicamente correto de Seu Arlindo:

- Bom dia, fessora! Tenho uma conversa importante pra ter com a senhora. Mas antes, aceita essa maçã e pode ir comendo, se estiver com fome, enquanto eu desabafo um causo da vida.
- Ahh, o senhor é pai de algum aluno? Seu...
- Arlindo Batuta, sou pai do Jorginho.
- Certo, Sr. Batuta, o senhor tem alguma preocupação em relação ao seu filho?
- Sabe o que é, dona...
- Sandra, Sandra Solene.
- Então, dona Sandrinha, o Jorge é um menino muito bom e esperto, nunca vi criança aprender tão rápido todo tipo de coisa! Mas ele é meio birutinha, tem uns parafusos a menos, sabe como é.. E às vezes fica um pouco teimoso. – Começou Seu Batuta, sem saber por que resolvera chamar a formosa moça pelo seu nome no diminutivo.
- Entendo, Sr. Batuta, mas isso é normal, as crianças nem sempre fazem sentido pra nós adultos, mas na verdade, muitas vezes são elas as mais espertas na maneira como lidam com o mundo. Elas têm uma inteligência que só nasce da pureza.

A professorinha certamente não imaginava o grau de peculiaridade ao qual Seu Arlindo se referia quando tentou explicar o temperamento do pequeno Jorge, mas logo o pai percebeu que seria inútil gastar mais palavras, uma vez que o garoto esclareceria tudo em dois minutos dentro da sala. Além disso, as poucas frases que lhe restavam na boca derreteram-se ao ouvir a doce resposta da educadora, que lhe soaram como música acariciando seus ouvidos cansados de vozes duras, os quais, nem sua mulher conseguia mais amaciar.

Foi a primeira vez que Arlindo sentiu algo fora das normas sociais, algo com um quê de proibido. Sentiu de maneira tão inédita que sequer percebeu o aviso do pecado que se aproximava.

- Agora acho melhor o Senhor se retirar, Seu Arlindo, pois logo as crianças chegarão e se houver um pai aqui dentro, todos os outros vão querer entrar e vai ser difícil retirá-los antes do final do dia. Afinal, é preciso que os pequeninos se acostumem ao novo ambiente longe de casa. – Discorreu Sandrinha, com leveza, retirando o homem do transe que ela mesma, sem querer, havia instalado em sua mente.

Batuta acenou com a cabeça e foi saindo, andando desajeitado de costas. Quando algumas sílabas finalmente voltaram a sua boca, já estava no corredor e murmurava a pergunta de quando poderia vê-la novamente, no exato momento em que esbarrou na barriga interminável da diretora da Escola dos Pinhais. Marieta Maledetta fazia sua ronda matinal, com o olhar habitualmente ameaçador a toda e qualquer criatura viva dentro de suas dependências e não deixou de assustar um pouco mais o pai aflito de Jorginho. O operário recuperou a compostura num sobressalto e saiu da escola direto para o trabalho a passos firmes.

Não havia tanto com o que se preocupar, Jorginho habituou-se incrivelmente bem ao sistema escolar – sem que precisasse se adaptar a suas regras. Decidiu, assim que pisou na sala de aula, que não tinha vontade de ficar sentado enquanto a professora escrevia pra lá e pra cá na lousa. Antes de gastar esforços em vão tentando prender o garoto a uma cadeira, Sandra teve uma idéia melhor: transformou Jorginho em seu escrivão oficial, estava encarregado de escrever com o giz tudo o que a professora mandasse – ou melhor, tudo o que ela quisesse, segundo o menino, pois para ele mandar não tem razão de ser, as pessoas apenas expressam suas vontades, hora um atende as vontades dos outros, hora os outros atendem as suas.

É claro que os outros alunos também se candidataram ao cargo de escrivão e Sandra deixou-os experimentar a função. Mas, um por um, foram desistindo, devido ao cansativo regime de escrever e apagar giz poeirento o dia todo. O único que não desistiu foi o pequeno Batuta, em vez disso, tornou-se uma verdadeira máquina de escrever e adquiriu vasto conhecimento gramatical antes que o resto das crianças aprendesse a separar as sílabas com facilidade.

A hora o recreio não podia ser hora de correr e pular para Jorginho, ele já fazia isso pra alcançar os cantos da lousa durante as aulas, então, sentava-se à carteira enquanto comia seu lanche ou brincava de fazer lição de casa fora de casa – só pra ser do contra.

***

segunda-feira, 31 de março de 2008

No final, todo mundo é gente

Não sei por que ainda tem gente que move mundos e fundos pra querer se parecer com máquina. Quem foi que inventou as empresas, afinal? Tudo bem que um pouco de ‘hierarquia’ pode ser necessário às vezes pra manter a produção constante, mas aí é que está o problema: aposto que a maioria das pessoas não ia ligar se o ritmo da produção fosse desacelerado, quem faz girar engrenagem é máquina, é ela que faz a esteira de produção enlouquecer operários em fábricas.

As fábricas que não são feitas de engrenagens, mas de pessoas, e que nem tratam de produção material, mas de ‘humanidades’, às vezes, também se parecem com linhas de montagem, tão inseridas que estão nesse sistema. É o modo de vida capitalista empurrando as pessoas e elas se jogando cada vez mais dentro dele, querendo construir-se com concreto, quando são feitas de vida.

Antes que este texto vire mais uma crítica apenas ao capitalismo, esclareço, é mais uma crítica ao homem, desde sempre tropeçando pra tentar viver em sociedade. São as pessoas criando sociedades a partir das diferenças que não nasceram com elas, diferente das formigas, que já nascem com sua função. São os egos, orgulhos e discursos enrijecendo, quando surgiram de uma natureza nada dura, mas indefinida, viva e incerta, que forma o mundo.

Então a chefe chama o estagiário pra sua sala cinza cor de burocracia e pede que ele se sente na cadeira de metal frio de artificialidade, enquanto ela fica em pé, só pra ficar mais alta:

- Você não pode chegar 5 segundos atrasado, tem que avisar, e para nós, da diretoria. Nós temos uma hierarquia por aqui!
- Desculpe, eu não sabia.
O olha duro de pedra nem se abala, aproveita pra fuzilar o pobre recém chegado assustado um pouco mais. Mas não era crueldade, mais uma inércia de anos ali.

Todos voltam para os seus lugares. O garoto deixa o nervosismo escorrer pela cadeira e cair no chão 20 andares mais pra baixo, vai entrando no refrão da sua música preferida da semana e fica calmo, quase esquece.

Na sala cinzenta, toca o telefone, a chefe atende entediada. Até que um sorriso lhe rompe a dureza. Continua a trabalhar, chama mais subordinados a sua sala. Eles vão e vem, com expressões diversas.

Invariavelmente, uma hora, iriam começar a se identificar e conversar na sala ao lado. Então toca o telefone, era da diretoria de novo, “oh não, mais burocracia” ? Estariam fazendo barulho excessivo pros limites do isolamento acústico?

Nada disso:
- Pão de queijo.
- Pão de queijo? - responde o estagiário surpreso – Com qual recheio eu mais gosto? Não sei, talvez requeijão.
- É, esse é bom! Não conseguia me decidir, vou pedir uns, vê se mais alguém aí quer alguma coisa da lanchonete.

Não há nada absurdo em pedir pão de queijo, mas o que espantou o estagiário foi lembrar que gente tem fome. E a chefe finalmente demonstrou um traço de gente.

Quando foi embora, a mulher de salto alto ainda se despediu:
- Tchau, meninos!

Depois, o sub-editor voltou da copa sem sapatos, de meias. O escritório discutiu a classificação da primeira e da segunda divisão do futebol e todo mundo voltou a trabalhar leve. O ambiente ficou feliz, parecendo humano, nessas simplicidades sutis. Vai ver que era humano mesmo, feito de gente.

domingo, 30 de março de 2008

Vou falar de uma vez


, de qualquer jeito mesmo, só pra falar. Pode ser que fique feio e que nem goste de ler isto no dia seguinte, mas vou falar, só porque, às vezes, a gente precisa falar umas coisas pra nós mesmos e se é com a gente, deveríamos agüentar qualquer palavra nossa.

Palavra feia também vem da alma
É um resto de calma
Por mostrar que nem tudo precisa ser tão bonito assim
pra ser belo

terça-feira, 25 de março de 2008

Argumento

Tem algo mais louco que justificar uma loucura?
Bem, se uma coisa louca caracteriza-se pela falta de racionalidade, qual razão capaz de justificá-la?
Só algo racional pode ser traduzido em lógica, portanto, não é loucura.

Tá, e desde quando justificar a não justificativa de uma loucura é justificável?

Não é a toa que a racionalidade do ser humano o enlouquece, logicamente.

domingo, 23 de março de 2008

Lacuna ou “A partir de hoje, não te amo mais!”


“Eu não tinha mais o telefone dela na minha agenda. Não sei por que, não me lembro de tê-lo deletado. Por isso, quando atendi, a voz dela me surpreendeu!”, contava-me um amigo sobre uma ex-namorada que havia lhe telefonado. Como acabam as paixões? Talvez, do mesmo modo como se perdem os telefones – nunca se sabe, ao certo, como isto ocorre hoje em dia, com toda a tecnologia das agendas telefônicas.

Um dia, você é surpreendido por uma ligação inesperada, ou liga para um número e é avisado pela misteriosa voz do sistema que ele não existe mais. Aí, fica sabendo que não tem mais o telefone do ‘fulano’ ou da ‘fulana’. Não se sabe como, muito menos quando, o número mudou ou perdeu-se, só se sabe o dia em que sua ausência foi notada.

É assim com as paixões. Ninguém pode marcar datas como: “a partir de, especificamente, hoje, não te amo mais”; menos ainda, “desde ontem, te esqueci”; ou “a partir de amanhã, te amarei eternamente”. Paixões vem, aos poucos ou de uma vez, sem bater na porta. Do mesmo jeito, vão, sem aviso prévio e sem deixar ‘seguro desemprego amoroso’. E não dá certo tentar controlar quando a ficha deve cair deletando o nome do fulano ou da fulana da agenda telefônica.

Às vezes, tarda-se a perceber que uma paixão chegou e já se instalou totalmente. Mas, em geral, o mais complicado é perceber quando ela foi embora. Há vezes em que uma pessoa percebe a dita cuja da paixão saindo pela tangente e termina o relacionamento, a tempo de evitar maiores complicações. Ou não, porque, normalmente, a outra pessoa envolvida tarda a perceber o retiro do sentimento e não consegue se desligar do caso. É por isso que a grande maioria dos problemas dos casais tem a ver com sincronia.

O fato é que, uma hora ou outra, cai a ficha. Pode ser com um telefonema, uma frase, uma entonação diferente, um olhar, um toque, um cheiro. Descobre-se o que havia de errado: uma lacuna no espaço onde havia, também sem advertência, instalado-se uma paixão.

sexta-feira, 21 de março de 2008

intensismo

Aunque parezcan
llenos de maguas
Celos son tangos
de almas aladas

Confusa es la noche
bajo tu cielo
Hermoso es el beso
que llena el invierno

Pimienta es caliente
solo en la boca
Bocas son túneles
que abren el mundo

La danza aprendí
con las estrellas
La luna es cantante
y el río platea

En el oscuro
Escenas brillantes
Por la ardentía
de nosotros amantes

quinta-feira, 20 de março de 2008

Joie

Da música que queria ouvir, não tenho CD

mas eu a ouço mesmo assim

e ela me faz sentir bem

É como o rastro do vinho

que fica na boca, já a garrafa vazia

É essa a beleza das memórias

Pra contemplá-la, inventaram a melancolia

e é preciso dizer que não se está triste

é aquele sorriso de olhos abertos

segunda-feira, 17 de março de 2008

Fumê

Rosa era uma garota de classe média muito filha dos seus pais, mas em busca de independência. Achou que tirar a carteira de motorista seria seu passaporte para alcançá-la. Entrou na faculdade e ganhou um carro. Passou a fazer jus ao dinheiro gasto pela família no “prêmio” pelo escrupuloso vestibular diariamente, várias vezes por dia. Dividia as tarefas que precisava fazer em algum lugar só para ter que percorrer o trajeto mais vezes ao volante. No trânsito, distraía-se escutando a mesma coleção de CDs ciclicamente e descobrindo paisagens urbanas através do insulfilme.

Do outro lado da janela e atrás de outro vidro escuro, ficava Jaime, o porteiro do prédio onde morava Rosa. Durante dez horas diárias, o ex técnico de computação e jogador de futebol de salão nas horas vagas, conhecido pelos colegas de trabalho como “Jaiminho”, observava o entra-e-sai de veículos na garagem do Edifício das Margaridas. Quando mudou para o turno da tarde-noite, começou a reparar na freqüência com que um carro vermelho que refletia até a luz do pôr do sol passava pela portaria.

O prédio ficava num terreno mais alto que a rua e era preciso subir uma íngreme rampa para entrar na garagem. Antes de afundar o pé na primeira marcha para a subida, era preciso passar pelo primeiro portão, à beira da calçada, e parar logo em seguida para não bater num segundo portão à frente. Então, o primeiro portão fechava-se atrás do carro, que ficava preso, como numa gaiola, por alguns segundos, até que o segundo portão se abrisse – “Medidas de segurança básicas!”, repetia o síndico.

Eram só alguns segundos, mas a precisão na dosagem de acelerador-embreagem tinha que ser exata para IIIIIIIIHH! Ops! Para o carro não morrer. Banalidade um tanto complicada para quem acabara de aprender o que, raios, era uma embreagem. Rosa aprendera rápido, mas a pressão psicológica causada por observadores a deixava nervosa e atrapalhada. O ponto de vista através de dois vidros escuros camuflava qualquer observador, mas a menor sombra de uma silhueta desencadeava a insegurança na garota. A jovem costumava chegar bem tarde da faculdade ou de algum encontro com amigos e, já com sono, não podia evitar imaginar o observador oculto rindo de sua incompetência automobilística, “É nisso que dá, dar carro na mão de criança, essa daí parece ter uns 15 anos!”, ele devia dizer.

Um dia, depois de virar a chave três vezes para reanimar o possante, Rosa resolveu abrir a janela para tomar um ar e encarar seu adversário, o observador, nitidamente. A silhueta escondida na sombra ganhou traços de um homem magro, de cabelos encaracolados, que vestia um terno impecavelmente arrumado. Uma figura que não a deixava tão nervosa. De repente, um “Boa noite, posso ajudar?” surpreendeu-a, vindo da parede, ou melhor, de um alto-falante embutido na parede. Uma voz tornava aquele observador, tão distante, estranhamente real. Rosa, suspensa em indagações desse tipo, respondeu apenas “Tudo bem!” e finalmente conseguiu fazer o carro sair.

No dia seguinte, ao chegar na portaria, Rosa abriu o vidro novamente. Desta vez, surpreendeu-se com a claridade sobre o porteiro: o vidro da guarita tinha sido quebrado! Antes de perguntar o que havia acontecido, ela se entreteve observando aquele rosto nunca antes visto, parecia com alguém conhecido, com algum ator famoso, daqueles de Hollywood mesmo! Riu-se imaginando o Orlando Bloom abrindo o portão para ela todos os dias, e ela sem nem dar a menor bola.

- Boa noite, senhorita! - disse a voz real dele, não transmitida pelo alto-falante.
- Boa noite... É... Que que aconteceu aqui?” - perguntou a garota.
- Moleques, dona, ficam jogando futebol por todo canto! Acertaram uma bola aqui, sorte que ninguém se machucou!
- Ah, crianças são assim mesmo... Mas eu achava que esse vidro era blindado...
- Era mesmo, mas não era “fumê”, aí, o síndico mandou colocar insulfilme e tiveram que colocar este vidro comum provisório.
- Ah, sim... E agora você não tem medo de ficar aí?
- Medo? Se for pra ter medo, a gente não sai de casa, não é mesmo? Não que eu seja muito corajoso, mas é que, na prática, eu fico só vendo pessoas como a senhora entrando e saindo do prédio. Uns parecem um pouco arrogantes, mas a maioria tem uma cara simpática.
Rosa riu-se:
- Acho que eu acharia engraçado ficar observando a cara das pessoas que passam por aqui! Mas, sabe, eu achava que você, o senhor, não era real atrás desse vidro!
- É muito insulfilme nessa cidade, as pessoas não se vêem mais direito, o mundo vai ficando meio virtual mesmo...
- É, as pessoas se escondem no medo da violência, mas acabam é atraindo o mal só pensando nisso, é difícil... Bem, mas melhor eu ir pra casa, boa noite, seu...
- Jaime! Boa noite, dona!
- Rosa. Nada de dona, chega de insulfilme por aqui!

Jaime ficou pensando que, por trás daqueles vidros e barreiras comportamentais todos, devia haver muita gente interessante, como aquela menina. Resolveu não sentir mais raiva dos óculos escuros que pareciam esconder um ar superior, era tudo jogo de encenação, artifícios usados em sociedade que causam efeitos dos quais os atores nem sempre estão conscientes, de tão acostumados com as convenções.

Rosa, por sua vez, continuou com seu dia-a-dia ocupado normal, mas passou a andar de vidros abertos e a conversar com os vendedores de balas e entregadores de folhetos nos faróis, ainda que não aceitasse tudo que distribuíam. Também resolveu parar pra sentir o vento, olhar a cidade e falar com as pessoas na banca de jornal, por exemplo. Sentia-se mais parte do ambiente a sua volta.

A manutenção do vidro blindado foi rápida, instalaram-no, mais escuro, no dia seguinte. Quando chegou em casa à noite, Rosa abriu o vidro para cumprimentar Jaime, mas encontrou a guarita escura e vazia. Quando o segundo portão se abriu, lá estava ele, de pé ao lado do carro:

- Boa noite, dona Rosa!
- Boa noite, Jaime! Já falei que não tem dona nenhuma!
- Desculpe, é costume! Você viu que já colocaram o vidro escuro?
- Pois é, achei estranho mesmo, vi a guarita vazia...
- Eu saí pra te cumprimentar...
- Fez muito bem, Jaime, vamos acabar com esse negócio de isolamento urbano! Diga, como foi seu dia?

A conversa fluiu amigável e naturalmente interessante. Jaime descobriu que Rosa tinha um computador com problemas e ela descobriu que ele podia ajudá-la. Combinaram que, às 17 horas do dia seguinte, ele iria até o apartamento 21 portando seus conhecimentos em informática.

Depois de apertar muitas teclas e fios, o computador ficou tinindo. Jaime aceitou, ainda com muita vergonha, tomar um café com bolo junto a Rosa e sua mãe. Numa conversa amigável, contou a elas sobre seu interesse por tecnologia e seus planos para o futuro, trabalhar na área de sua vocação.

- É, bom rapaz. Bom e belo, até que não é de se jogar fora... – Disse a mãe de Rosa.
- Ai, mãe, não vem querer me arrumar partido! Sempre falei que vou ser solteira quando crescer.
As duas riram e o assunto morreu.

O fato é que o caso clichê de amor entre classes sociais diferentes aconteceu, logo depois que Jaime pediu demissão da portaria, pois teria que ficar à noite em casa para cuidar de sua mãe doente. Ao final de seu último expediente, deixou um bilhete com seu telefone debaixo da porta de Rosa, sabia que ela ligaria. E ligou mesmo. No final de semana, foi visitá-lo em sua casa e levou biscoitos que sua mãe mandou para a mãe dele. Depois, saíram e foram ao cinema, onde rolou o primeiro beijo e ela ganhou sua primeira rosa vermelha.

Eles moravam longe, ela estava sempre ocupada, ele não entendia suas ausências. Quando as discussões ficaram insuportáveis, decidiram terminar, mas foi pacificamente. Vez ou outra, ligavam-se, perguntavam da família, do trabalho. Um dia, o primo de Rosa virou gerente de uma Lan House e precisava de um parceiro, a indicação de Jaime foi imediata. Deram-se muito bem, o negócio cresceu e se estabilizou. Jaime nunca chegou a ir às reuniões da família de Rosa, mas encontravam-se nos aniversários do primo dela, sócio dele.

Um dia, aconteceu o improvável, Rosa iria se casar. Conhecera um alemão em suas aulas de salsa, amor ao primeiro passo, estava certa do que queria. Jaime seria o padrinho, foi o primeiro a saber, Rosa nem sabe dizer o porque ligou para ele antes de contar para suas amigas, um impulso. Ele estava muito feliz por ela, também namorava uma garota mais nova que o fazia feliz.

Uma semana antes do casamento, foram arrumar o apartamento que haviam comprado. Foi aí que começaram os desentendimentos. É que o noivo de Rosa gostava muito de cortinas. Cortinas, óculos escuros e insulfilme. Ela não agüentou, sentia-se sufocada com todas aquelas barreiras. Comprou-lhe o último modelo de óculos de sol da moda, chamou-o para uma conversa no parque e terminou com ele ali mesmo, debaixo das sombras das árvores.

Ele resolveu voltar para a Alemanha duas semanas depois. Nunca mais se viram. Ela sobreviveu bem. Mudou-se para um loft bem iluminado e arejado, largou um de seus dois empregos, o que não lhe agradava, de assessoria de imprensa; ficou com o outro, como repórter da sessão de entrevistas de uma revista e entrou para uma Ong de apoio a crianças com deficiência visual – o que a fazia mais realizada.

Noutro golpe do acaso, teve que fazer uma matéria sobre empresas de informática e chamou Jaime para uma entrevista. Estão namorando desde então. Estão diferentes, o jogo é aberto, não escondem nada um do outro. Se isto começar a acontecer, será hora de terminar, não dá pra viver nas sombras, nenhum dos dois gosta disso. Talvez Rosa até tenha perdido sua vocação para ser solteira, mas não perdeu a mania de dizê-lo, talvez nunca a perca. Quem liga? O que os dois querem é sinceridade - e isto parecem haver encontrado, no meio de tantos obstáculos e coisas obscuras.

sábado, 15 de março de 2008

A vez do silêncio





> Pra quem ainda não viu

(Resenha na gaveta pra um trabalho da facul)


Dizem que silêncio numa mesa de jantar, depois de servido o prato, é bom sinal para o cozinheiro, pois indica que as pessoas estão tão concentradas apreciando os sabores que até se esquecem de falar – e quando o barulho irrompe, são críticas positivas. Era este o clima da sala de cinema onde assisti o premiado sucesso dos irmãos Coen, “Onde os fracos não têm vez”.

O silêncio não era só da platéia, constitui um dos elementos de efeito mais marcantes do filme. A trilha sonora compõe-se apenas por ruídos de passos, pneus sobre areia, tiros inesperados e o som do vento desértico do Texas norte-americano. Isto somado a atuações brilhantes como a de Javier Bardem (ganhador do Oscar de melhor ator coadjuvante pelo papel) leva, com êxito, o suspense intrínseco da trama para a tela.

Baseado no livro do norte-americano Cormac McCarthy, o filme narra a saga de perseguição entre o ex-soldado Llewelyn Moss (interpretado por
Josh Brolin), o xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) e o assassino psicopata Anton Chigurh (Javier Barden) no Texas de 1980 - retratado em cenários com a simplicidade áspera e as cores características do clima árido do “velho oeste” estadunidense.

A “caçada” começa quando Llewelen encontra uma maleta com dois milhões de dólares junto a uma operação de venda de drogas que acabara em mortes. Os gangsteres mexicanos envolvidos na operação contratam Chigurh, que não hesita em cometer homicídios, para reaver o dinheiro, enquanto o xerife Bell segue seus rastros na tentativa de proteger Moss.

A esposa de Llewelyn, Carla Jean (na atuação de
Kelly Macdonald), privada de explicações do marido sobre sua fuga, vira moeda de troca em uma cruel proposta de Chigurh ao fugitivo, que não a aceita e arma um plano para que Carla fuja com o dinheiro.

A moeda é um objeto que aparece algumas vezes no filme, introduzindo a idéia de destino, quando o psicopata manda suas próximas vítimas escolherem “cara ou coroa” para decidir sua sorte.

Paralelo à investigação, o xerife Bell passa por um momento de reflexão em que avalia o caráter violento e impiedoso da natureza humana e decide se aposentar após o fim do caso. É esta a principal questão instigada pelo filme, uma visão sobre o comportamento e os instintos humanos quanto à violência.

A premiação com quatro Oscars, incluindo o de melhor filme, à sóbria obra dos irmãos Coen surpreendeu parte da crítica, acostumada a ganhadores que se encaixam mais no perfil dos “blockbusters”. O silêncio da exibição, enfim, parece emergir da densidade das reflexões propostas.

(Seleção de fotos de divulgação do filme acima bem melhores que a do cartaz mais conhecido - aquele com a sombra do Josh Brolin correndo no deserto, bem no meio do nariz do Javier Bardem, cujo rosto é o plano de fundo, que, pela iluminação quase em triângulo, parece mais um caçador de tesouros saindo de uma pirâmide! Veja no link: http://theoscarigloo.com/2007/contenders/full_movieimage_12526.jpg )

sábado, 8 de março de 2008

Novela*

Que maldição a dos roteiristas de periódicos, o prazo. Força-os a escrever independente de suas emoções e estados de espírito. Imagine uma discussão pesada num dia de sol ou uma cena de amor numa tarde de desilusão. Ou ainda, ter que escrever em português, quando o pensamento voa em francês. Ter que preencher uma hora inteira ou esmagar trinta minutos. Limites.

* Feuilleton

retiro

retiro muito do que disse
coloco o que não disse
e então, me retiro

- que tal um retiro espiritual?
propus aos meus egos

se não tivessem capitalizado até a espiritualidade,
eu ia pra um
melhor fazer um natural
alguém sabe a receita?

inventemos.
(assim que surgir ânimo)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Hoje, um milênio

Olá, meu bem,
Que bom te encontrar!
Eu vim de trem,
Não sabia em qual estação parar
Desci aqui por acaso,
Porque sabia que te encontraria
- pelo menos, era o que eu queria
Não ria, o que vim falar é sério:
É que nesta semana, passou-se um milênio
E nem tive tempo de te avisar!
Se me achar diferente, pode estranhar
Teremos tempo pra nos adaptar
Dois dias, três séculos
A gente descobre...
E se não nos descobrirmos juntos,
Há várias linhas de trem
Cada um escolhe um vagão e vão
As lembranças juntas no bagageiro
Que resiste até às curvas de não
Porque no destino é certeiro
Então, pode ser que se passem séculos
Pelos primeiros ou por longínquos trilhos
Da minha ou da sua estrada
Pode ser até que descarrilemos mundo afora
Mas aquelas lembranças continuarão ali
Mais ou menos visíveis, camufladas ou iluminadas
É que o destino, vendo meu desatino,
Propôs-se a levar nossas lembranças, mesmo clandestino
Foi este o acordo que você assinou semana passada
Só passei pra te avisar
Porque nesta semana, passou-se um milênio
E eu não passei por aqui
Agora, tenho que ir
Minha estação fica no sentido contrário
Lá tem gente a me esperar
Quem sabe, vou até me encontrar, por acaso
Junto ao abraço, deixo-lhe um pedido:
Lembre-se do nosso bem
Não somos de ninguém,
Mas quem boas lembranças tem,
Quer sempre bem ao bem.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Go fast que o resto é trash!

A lei é fast-food, Internet rápida, carros de corrida em ruas de cotidiano, louça de plástico, toalhas de papel, segundos em relógio de ponteiro, centésimos nos digitais. Os outdoors, os comerciais de TV, os pop-ups dos sites, os drive-thrus, as agências de notícias repetem o mantra: consuma, consuma, mas consuma rápido, descarte, deixe pra trás, esqueça os dejetos, siga em frente.

A história mostra que a sociedade é movida à base do consumo há séculos, o que diferencia o atual consumismo é a matéria dos objetos de consumo, eles não precisam mais ser materiais. Consome-se diversão, entretenimento e informação a velocidade desenfreada.

Aí, formam-se pilhas de papel bloqueando a luz da janela ou gigabytes de arquivos ocupando a memória do computador. Mania de guardar? Antigamente, era útil manter velhos trabalhos, estudos e textos interessantes em casa para usar numa próxima pesquisa, pois era mais prático do que procurar tudo de novo.

E hoje? Oras, na maioria dos casos, dá mais trabalho manter esses gigantescos arquivos pessoais longe das traças do que pesquisar seu conteúdo novamente. Além do mais, a validade das informações arquivadas é extremamente curta, o que o obriga a pesquisar as atualizações sobre o tema antes de usar as informações guardadas.

Agora, alguém me explica por que, mesmo assim, tenho tanta dificuldade em me desfazer daquela enxurrada de revistas, jornais, folhetos, fragmentos de livros xerocados, anotações e até gravações de voz, que inundam o chão do meu quarto?

Acho que sou nostálgica demais pra desprezar o passado sem dó. Também nunca fui de confiar piamente em santos, São Google que me desculpe. Ah, alguém me arruma um espanador? (Ou eles já saíram de circulação?)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Farelos

Ao lado do ponto de ônibus, uma mulher discutia com um guarda. Quase me revoltei, quando percebi que se tratavam de dois amantes, ou ex-amantes. O homem indignou-se:
- Mas a gente tentou. Então não valeu a pena?
- Valeu. Mas foi como comer bolacha água e sal sem água depois. – Cuspiu a mulher.
Os olhos dele vidraram nela, um como interrogação e o outro como um ponto de exclamação berrante, que fazia até as sobrancelhas enrugarem.
- Isso mesmo! – Ela continuou – Falei, falei, sem parar. Você deixou eu te mastigar todo, frase por frase. Mas não me deu nenhum refresco, nenhuma gota, nem em forma de resposta, nem de olhar, nem de qualquer coisa! Só me deixou uns farelos de você, que se esconderam nos meus cantos durante esse tempo. Minha garganta está seca e eu tusso esses farelos!
Empurrou o ombro dela, de leve, em direção à porta do ônibus que havia parado e disse, mexendo os lábios sem mexer os olhos:
- Vai, este é o seu. Fiquemos em paz.
E saiu, os olhos vidrados no céu - era todo farelos. A moça depositou-lhe uma última olhada de cima a baixo, passando pelos olhos estagnados e as mãos trêmulas e subiu na “viação Parque Dom Pedro II”.
Subi no ônibus seguinte. Chegando em casa, fui tomar um chá. Imaginei que aquela mulher deve ter chegado na casa dela e tomado um chá também, quente, pra dissolver as migalhas e, depois, escovado os dentes. E eu recolhendo farelos de vidas por aí, pra jogá-los num caderno e jogá-lo no vento, que corre de vidas em vidas.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Quem, eu?

Eu sou uma errada acertante
Sou constantemente inconstante
Gosto de pensar que sou viajante
E de viajar em sonhos distantes

Ando em idiomas, bocas e retinas
Às vezes me acho em algumas esquinas
Outras me perco em qualquer besteirinha

Gosto de amores, vida, versos e cores
Tento versificar diversidade
Não abro mãe de amizade

Sou rica, sou pobre, sou grande, pequena
Espelho, sou menina e morena
Minhas pupilas enxergam dilemas
Meu coração bate palpites

Gosto de achar que sou esquisita
E de perder a versão já dita
Sou muito do que gosto
Gosto tanto de escrever!

Não sou letras nem papel
Talvez, reunião de luzes ao léu
Sou nada que me defina
Sou tudo fugindo da rima.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Esmalte marrom

Acordei e fui direto pro salão pra fazer as unhas. Enquanto fazia malabarismo com os dedos pra virar as páginas do livro sem borrá-las, era interrompida por uns sobressaltos de susto provocados por uma mulher atrás de mim – é que ela não veio com botão de ajuste de volume na garganta.
Tudo bem, pensei comigo, isso dá assunto pra uma crônica sobre o comportamento humano. Até chegar a próxima cliente. A loira-descolorida de uns 40 anos sentou sua silhueta quase esbelta, mas sacana, num banquinho ao lado da mulher do volume estourado e começou a maldizer os homens – ou melhor, a falta deles em sua vida ultimamente.
Aquele alto-astral que certas mulheres não mais jovens, mas “modernas”, parecem esbanjar quando tiram os pudores de falar sobre a atração física entre os sexos sumiu quando ela deixou passar aqueles desejos nascidos de um rancor barato por entre os dentes – o que ficou ainda mais sujo pela fumaça do cigarro.
Reclamava de uma antiga ocupação de pernoite, à qual chamava apenas de “ex-caso” ou “gostosão-canalha”. Forçava repúdio ao falar dele, mas sua vontade de contar o caso quase recém-requentado denunciava que seu entusiasmo não poderia inflar mais senão por aquele exato tipo de “canastrão”. Aliás, canastrão não, mulherengo barato, simples.
Segundo ela, pra ele tudo parecia muito simples. E, nesse ponto, tive que lhe dar razão – silenciosamente enquanto olhava meu livro. Pros homens, tudo sempre é mais simples do que pras mulheres. Até a ciência explica sua facilidade com as exatas.
Veja só: o dito-cujo havia brigado com a namorada e ligou pra ex do cabelo descolorido em seguida. Esta fez um esforço descomunal pra dispensá-lo afirmando sua “dificuldade” apesar de estar “à caça” há semanas. Ele fez mais um pouco de graça e desligou. Foi ligar no dia seguinte justo na hora da manicure – aposto que não imaginava que sua “gracinha” alcançaria não só a loira, mas toda platéia feminina presente no cabeleireiro. Ela aproveitou ainda mais a audiência colocando no viva-voz. A cabeleireira ao lado desligou o secador pra não atrapalhar o espetáculo.
Mulher tem dessas manias, sabemos exatamente o que está por vir, mas mesmo assim não conseguimos controlar a ansiedade ou o entusiasmo. A voz de galanteador disse que já tinha se resolvido com a namorada. A personagem no papel da ex aproveitou para chamá-lo de nomes feios (mas não tão feios que não passassem pela censura do respeitável público) e afirmar que ele procurasse outra, que ela não era uma “qualquer” pra consolo de uma noite.
- Muito bem feito! – Gritaram os egos de todas as presentes, através do brilho de vingança indireta nos olhos.
Nada mais normal do que sentir algo parecido, nem que lá no fundo das emoções. Mas a cena me fez sentir mais aversão por aquela mulher do que pelo canalha do telefone. Não sei a exata razão. Talvez tenha sido o tom da voz dela, fatalmente sedutora, ao dizer “Adeus, meu querido”, como quem despeja uma óbvia lição de moral e depois dá um tapinha nas costas do infrator, como que demonstrando cumplicidade no “crime”. Se ela tivesse dito um “tchau” seco ou até um “adeus, querido” irônico, seria diferente, demonstraria, ao menos, um êxito em se valorizar e mostrar veemência nas falas anteriores.
Mas, na verdade, o que me causou tamanha aversão foi a decepção por ver a maneira amarga como muitos acabam por encarar a vida, sobretudo, os relacionamentos amorosos. Percebia-se no ar que aquela mulher não se sentia feliz pela atuação que acabara de fazer, claro que sorria pelas carícias no orgulho que a audiência da platéia lhe proporcionou, mas não estava realmente satisfeita. E talvez seja impossível que se satisfaça enquanto encare a vida dessa forma.
Ela é uma mulher mascarada em frente ao espelho. É como se tivesse vestido a pele da própria amargura que vê na vida. A dificuldade em encontrar um relacionamento que traga felicidade cotidiana é um dos aspectos amargos deste mundo, mas é possível aceitar isso sem tornar-se amargo também. Ela não havia conseguido, até aquele dia, entrou na amargura da solidão e ficou presa lá, olhando o mundo através de uma rede suja e mofada.
O final de fôlego que ela soltou ao suspirar depois de toda a cena mostrou que está enclausurada na amargura. Foi uma ponta de alívio. Se ela está dentro da amargura, quer dizer que sua essência não é amarga, está apenas coberta por essa capa suja. E, pelo menos, ali ela parece ter encontrado uma amiga, pela familiaridade e confidência com as quais falava com a manicure. Espero que ela consiga tirar as manchas marrom-amargas das unhas dela e sugira um vermelho vivo.