sexta-feira, 26 de junho de 2009

O nascimento de Maicou Jaquesson

Votando pra casa do mercado onde trabalhava como empacotador, Maicou ouviu ecoar pela ladeira a triste notícia: o inspirador de seu batizado havia morrido. Foi um baque. Sentou-se na calçada, adiando a volta pra casa pra não ver o desolamento da mãe. Madinusa – nome inspirado nos produtos Made in USA, com os quais sua mãe tanto sonhava – estava grávida quando o Rei do Pop veio gravar um clipe no Morro Santa Marta em 1996.

A garota de 16 anos tinha acabado de perder o namorado, pai de seu filho, numa batalha pelo tráfico de drogas na favela que virou cenário. Como se não bastasse, haviam cortado a água e a luz do barraco onde vivia com a mãe, também viúva, porque não tinham pagado a taxa ao vizinho que fizera o “gato” pra ligá-las. No entanto, todos os problemas do mundo sumiram, como fumaça de tiroteio, quando Michael Jackson subiu a ladeira e tocou a mão de Madinusa com sua mão “branquinha, cheia de veias azuis”, por exatos três segundos.

Ainda havia esperança. A garota sentira que o cheiro da fama é igual ao de gente. Se ela não tivera sorte nos testes para agências de modelos e comerciais de tevê – porque era muito difícil dominar seus cabelos armados para atender aos padrões globais (da Rede Globo), seu filho poderia ter outro destino. Batizá-lo com o nome do ídolo lhe traria sorte, atrairia o sucesso tão almejado, mas inalcançável para os espectadores passivos do “horário nobre”.

Treze anos depois, o jovem, trabalhador desde os sete anos de idade, negro, nariz largo, não tinha qualquer semelhança com o popstar branco, de nariz fino e cabelos lisos que vivia numa eterna infância. Exceto o ritmo pra dançar. Andava pelas vielas da favela como se deslizasse por um palco. Improvisava coreografias ao som do bater de panelas e martelos nos dias de obra e dançava qualquer estilo de música nas festas com os amigos. Mas do que gostava mesmo era o maracatu, o forró e o samba, que ensaiava num Centro de Cultura Original aberto no morro por um grupo de atores de Teatro do Oprimido.

Porém, aquele remelexo todo não estava certo. Já havia passado a moda do É o Tchan e dançar virara “coisa de bixa”. O novo ídolo de sua mãe era um jogador de futebol que acabava de se mudar pra Europa. Jogar futebol sim, estava na moda, era o Pop do momento, “e é isso o que você devia fazer, Maicouzinho! Ir atrás de um time, sabe, esses técnicos tão dando muita oportunidade pra rapazes como você”, dizia Madinusa. “Ou então, já que é pra dançar, podia fazer que nem aquele que te deu o nome! Passos certos, retinhos, nem parece de gente!”, replicava sua avó, “imagina se ele vem aqui nos visitar de novo? São esses remelexos de pobre que você vai mostrar pra ele?”, continuava.

Nem adiantava explicar pra elas e pros seus colegas - que já estavam todos entrando pro crime atrás de naique xoques e relógios de marca que viam na TV – que a dança era uma forma de expressão, de cultura, de diálogo, que não tem regras, que é arte e que é transformadora! Por pressão do grupo, decidiu parar de freqüentar os ensaios por um tempo e até tentou jogar futebol, sem sucesso, aquilo não lhe alegrava a alma.

Mas, num repente, o Rei do Pop morreu. Seria a morte da ditadura do Pop também? Maicou decidiu que sim. Não tinha mais de quem ter vergonha de mostrar seus rebolados tortos. Libertou-se do peso de seu nome e passou a guiar-se pela consistência do seu eu. Foi nesse dia em que se deu seu verdadeiro nascimento.

Maicou voltou aos ensaios no centro cultural. Depois de terminar os estudos, partiu em turnê pelo país. Aprimorou seu controle corporal e passou dar oficinas de auto-conhecimento por meio da dança. Deixou-se acreditar na força da arte passada a pessoas de comunidades afastadas dos holofotes. Deixou-se guiar pelo amor sem preconceitos e uniu-se a Maique Taisson, companheiro de trabalho.

Um belo dia, quando passava uma temporada na casa da mãe, no Rio, a vizinha veio lhe trazer a boa nova: “Maicou, tem um moço do Circo do Solei que quer te conhecer! Ele disse que você tem talento pra ir viajar o mundo com eles!”. Depois de uma conversa com o simpático empresário alemão, que lhe explicou sobre a rotina de ensaios e o “alto nível” do público que lhe esperava, o jovem - agora com 22 anos - negou a “oportunidade”. “O trabalho desse circo é admirável, mas não é pra mim. Passei muito tempo preso a padrões que não combinavam comigo e com as pessoas que vejo na rua, preso a uma identidade que não era minha. Agora que me libertei, nasci pra vida e pra felicidade, não abro mão disso”.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Eu sou minha revolução

E, nisto, não há nada de egoísta. Ocorre que nós, animais humanos, não somos formigas. Não temos funções pré-determinadas, nem devemos querer aceitar uma rainha que nos indique seu projeto único e absoluto de formigueiro. Devemos tomar cuidado com certos conceitos de igualdade que buscam a supressão da individualidade (falo da globalização neoliberal). Somos iguais sim, mas no sentido de valor, valor este, no sentido de valer - já que ninguém vale mais do que o outro e, portanto, não deve agir como se tivesse o direito de subjugá-lo. Iguais no sentido de capacidade de formulação de consciência e ação, mas intrinsecamente diferentes nas maneiras pelas quais cada um constrói esses dois pilares-projeções do eu.

Minha revolução sou eu, porque, uma vez que não existe um ou alguns animais humanos cujo código genético determina como responsáveis pela revolução de sua comunidade, e que cada comunidade é mais complexa do que a simples soma de seus indivíduos, cada animal humano tem a capacidade e a responsabilidade de se auto-revolucionar.

É claro que tal revolução não se trata de um ato solitário. As estratégias utilizadas para a massificação da cultura já demonstraram que a alienação para a aceitação desses produtos “culturais” se dá, principalmente, por meio do isolamento das pessoas em frente à televisão. Mesmo que dois indivíduos assistam à teletela (alusão ao livro 1984) juntos, não estão interagindo verdadeiramente, as falas da tela substituem o diálogo que deveria surgir entre eles. O diálogo é o que evidencia as diferenças entre as pessoas, que aprendem a conviver apesar delas. Convivência não significa a supressão dessas diferenças, é o que possibilita a diferenciação do outro, que dá força à individualidade – não ao individualismo.

Individualismo é aquilo que leva ao surgimento de “salvadores da pátria”, heróis super-poderosos que teriam o poder de incutir sua auto-revolução a todas as outras pessoas, bem como seu projeto de revolução para a sociedade em geral. O mecanismo seria muito simples: bastaria que uma cabeça brilhante tivesse uma idéia de solução - ou aderisse a uma, destacando-se por seu carisma - para todos os problemas da humanidade e a ditasse através de um alto-falante global. Os ouvintes se eximiriam do esforço de entender essa idéia e de levá-la adiante, porque esse ser extraordinário faria a mágica da revolução acontecer por sua conta e risco.

Por mais inúmeros que sejam os heróis que ficaram para a história – cujos superpoderes foram fabricados historicamente -, nenhum deles foi o único responsável por qualquer revolução. Nem Lênin, nem Che Guevara, nem Lula, nem quem-quer-que-seja foi, é ou será capaz de instaurar uma revolução real no cotidiano de todos. O fato de terem sido pessoas corajosas, carismáticas, ótimos exemplos (ou não) é importante e merece estudo, memória, mas não glorificação. Podem ter sido responsáveis pela disseminação da semente de um projeto de sociedade diferente, mas foram, são e serão incapazes de fazê-la florescer sozinhos. Acreditar na salvação por um messias é uma postura conformista que ssó gera imobilidade.

Revoluções reais não acontecem pela vontade de um líder ou pela exaltação de uma idéia pronta. É preciso que cada um se revolucione e, então, descubra, no debate com os outros, alternativas a serem construídas em conjunto para revolucionar a comunidade. Já que o valor e a vontade de um conjunto de pessoas não são iguais à simples soma das vontades de todos os indivíduos que o compõem, é impossível que a revolução desse grupo aconteça a partir de um projeto individual. Mas é preciso a participação de todos, por isso, é preciso se auto-revolucionar. Nesse sentido, uma revolução pessoal é o que de mais coletivo pode haver.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

pr’onde quer que seja

*
de repente, tenho minhas noites de volta. tempos vadios de furacões particulares. é como se me tornasse mais “eu” novamente. a madrugada é muito do que sou: filosofias de luar, crises existencializadas, solidão-companhia, mistério, meia-luz, focos de brilho, chocolate e vinho, passeios pelos pensamentos e letras, tempo sem hora, sonhos sem horizonte, ventos de reviravolta.

tão minha, que me parece estranha. será que algo mudou? a cor do céu, a energia das estrelas? algo me deixa tonta, confusa de tanta informação. então, já resolvi, quem mudou fui eu. será que a madrugada ainda é minha como antigamente? se é, ainda é da mesma forma?

chega de “mesma(o)”, quero furacão. desses ventos que costumam me assolar com certa freqüência. diria até que saio em busca deles, mas geralmente são os próprios que me arrebatam no caminho.

andei percebendo que mudo tanto, que não tenho medo de reviravoltas bruscas – mas preciso saber pra onde estou indo. na verdade, esse onde pode até mudar, pode ser onde-quer-que-seja, só preciso saber que me movo. para me posicionar. como se isso me desse base na desordem.

no caos que somos, que cada um é, preciso saber apenas se estou sendo o que sou, ou o que era, ou o que acho que eu mesma quereria ser – antes de alguns eus passarem a não ser mais eus e assim sucessivamente. tudo em busca duma sinceridade tão pura que nem sei se existe. mas assim como o ar que não vejo, não deixo de respirar.


*


Vvvvvvvum!

busco um furacão que me enrosque
pé na mão, sonho no dia, tato nos ouvidos

um tornado que nos viaje
achemos tesouros, povos, batuques

ciclone que nos renove
tal cachoeira, orvalho da manhã

fujo da calmaria
eterno domingo de sol à pino
derretendo

precisa
mos

m
___o
_v
__-i
-m
__e
n
_t
o

domingo, 7 de junho de 2009

Discurso para esvaziar a discussão

O editorial da Folha de São Paulo de 6/6/09 (“Moinhos de vento na USP”) evidencia a inversão de foco utilizada pela imprensa grande para desviar a atenção do que realmente deve ser discutido. A greve, a “bagunça” causada pelos manifestantes, o trânsito que o protesto gera na avenida são colocados como problema central. Não há disposição para discutir as motivações do movimento. É como tentar curar sarampo cobrindo as manchas na pele com maquiagem.

Concorde-se ou não com os métodos escolhidos para mobilização - greve, carro de som ou escudos de papelão -, seu objetivo é trazer a discussão à tona. A reação da imprensa deveria ser problematizar as questões que envolvem as reivindicações dos “grevistas”, e não noticiar apenas há quantos dias estão paralisados ou o quanto intensificaram o trânsito. O que se vê, ao contrário, é a tentativa de apagar explosões que são sintomas imediatos da indignação com a precarização do ensino – até quando conseguiremos caminhar sobre esse campo minado? Não adianta tentar calar a insatisfação com uma mordaça, a solução só virá a partir de um grande debate que envolva toda a sociedade.

Da mesma maneira, colocar a polícia militar dentro do campus da universidade para amedrontar estudantes, funcionários e professores não ameniza, senão, impulsiona os protestos. É mais uma expressão da indisposição ao diálogo. Alguém se sente à vontade para negociar frente a cassetetes e fuzis?

Enquanto isso, dentro de sua fortaleza, a reitora parece sentir saudades da agitação em torno da ocupação da reitoria de 2007. Na época, o arrombamento das portas do prédio foi deflagrado pelo não comparecimento de Suely Vilella a uma das inúmeras reuniões solicitadas pelos estudantes, para debater os decretos impostos pelo governo estadual. Hoje, as reivindicações são outras, mas a postura da reitoria permanece a mesma: em todas as reuniões de negociação com os manifestantes, negou-se a debater as principais reivindicações – a criação da Univesp*, o financiamento da educação pública e a criminalização dos movimentos sociais.

Contudo a reitoria e a imprensa não são os únicos culpados pela falta de debate. Boa parte da sociedade também não se importa com as questões. Vivemos um tempo de desencanto e desinteresse pela política que é a verdadeira crise do mundo contemporâneo, muito mais devastadora que a econômica. Sufocadas pela rapidez do cotidiano pós-moderno, em que qualquer pedrinha pode atrasar o caminho e causar um prejuízo enorme, poucos têm paciência de parar para refletir. Assim, vai-se dando um jeitinho e tapando o sol com a peneira até (além d)o limite. Nessas horas, queria acreditar na teoria marxista do “descenso”, para a qual, após um período de mobilização intensa, segue-se um de desmobilização que, então, desencadeia a mobilização novamente.


*A comunidade uspiana não é contra o ensino à distância em si. Não aceitamos o projeto da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). O documento foi aprovado em uma votação de validade duvidosa no Conselho Universitário no final do ano passado, sem passar por qualquer discussão prévia com a comunidade universitária e em geral. Não houve empenho em explicar e debater as sete páginas que dão conta (?) da criação dos novos cursos de licenciatura à distância - talvez porque não houvesse muito o que debater, uma vez que sete páginas não são suficientes nem para um trabalho final de uma disciplina de graduação.

O modelo aprovado não diz como serão exatamente esses cursos. Seus apoiadores parecem crer que eles darão certo apenas pelo fato serem realizados pela “Excelentíssima USP”. Até hoje, não conheci essa misteriosa entidade que dá conta de tanto conhecimento. A USP é feita por pessoas, que precisam se dedicar para estudar e debater, durante um bom período de tempo, antes de criar novas graduações e métodos de ensino.

Além disso, os docentes da universidade são contratados, por determinadas cargas horárias, para cumprir atividades de ensino, pesquisa e extensão. Como não foram contratados novos profissionais para o oferecimento das graduações à distância, imagina-se que os professores atuais – que já são poucos para a quantidade de alunos e disciplinas hoje existentes – terão que abdicar de algumas de suas atividades para fazê-lo.

A Univesp não nasceu em prol do aumento do acesso à educação de qualidade. Foi empurrada “goela abaixo” à USP pelo governo do estado, na tentativa de amenizar um problema histórico de má formação de professores. Mas como será possível sanar tal problema com um método de ensino tão incerto? (De novo, a peneira para tapar o sol?). Os grevistas e manifestantes também defendem o aumento de vagas nas universidades públicas, mas um aumento real, em que todos tenham direito à mesma qualidade de ensino.

(texto enviado à Folha de São Paulo)