segunda-feira, 18 de março de 2013

vista leve


na esquina em frente a esta janela, acontece de passarem personagens de outros tempos da minha vida. não se sabe ao certo identificar sua matéria: fantasmas, alucinações, fantasias ou coincidências. o fato é que tal fenômeno ocorre igualmente em outros lugares, mas tem esta esquina – bem no terceiro “ponto de ouro” do quadro fotográfico emoldurado pela janela do meu quarto – como palco predileto.

às vezes, são relances; noutras, cenas inteiras. agora mesmo, passou-me uma destas, com direito a subida da rua curva que vai desaparecendo atrás das casas do outro lado, até fechar a fotografia. um garoto nos seus dezoito anos passava carregando sacolas de supermercado - não tão pesadas que lhe dificultassem o andar, nem tão leves que não lhe delineassem, levemente, os músculos dos braços branquelos expostos pela camiseta regata. debaixo dela, uma bermuda de tactel de cores exoticamente descombinantes. sob um clima para roupas um pouco mais quentes, os chinelos de dedo e os cabelos meio bagunçados já quase sem corte finalizavam a aura de frescor que emanava naturalmente.

foi instantâneo o reconhecimento desse moleque, com quem vivi uma paixão adolescente leve e intensa como a descoberta do prazer. acho que jamais serei capaz de lembrá-lo sem sentir, como se fosse hoje, aquele susto fresco de hortelã. um suspiro completo conforta-me os pulmões, certo como o andar confiante e inseguro de quem se sente pronto e ávido por conhecer o mundo finalmente.

poderia, facilmente, viver nadando nessas memórias de tempos bons. acho até que nadaria em lembranças não tão boas e mesmo ruins – guardada uma segura distância temporal proporcional a cada uma delas. as emoções que sentimos ao longo da vida nunca param de nos emocionar, porém, guardado esse devido tempo particular, tornam-se memórias. e as memórias são feitas de outra matéria que não a do corpo. substância que pulsa entre coração e mente, muda de estado conforme o ângulo presente do qual a tocamos.

não é que se tornem fisicamente inócuas – muito pelo contrário -, somos nós que mudamos e o que nos fazia tal efeito já pode causar o oposto ao olhar carregado de tempo. assim como as células do corpo nascem e morrem a todo instante e já não há uma sequer que te componha desde o nascimento, também são vivas as células invisíveis das lembranças. somos algo transcendente entre esses dois tipos de células que é mutável como elas, mas mantém sua identidade em meio a esse caos natural.

é isso o que torna possível o passeio dessas memórias à minha janela. (ainda creio que, talvez, consiga tocá-las um dia).

mas o mais intrigante foi dar-me cara comigo mesma, noutra fase da vida, na dita esquina misteriosa. a primeira vez em que isso aconteceu foi também a mais arrepiante. meu avô havia falecido a menos de um ano e ainda me era extremamente difícil pensar em qualquer coisa que remetesse a ele sem ficar profundamente abalada, quanto mais enxergar a beleza daquelas lembranças. um belo dia, ao abrir as persianas de manhã, foi se desenrolando a imagem de um senhor à esquina com uma criança no colo. de longe, as cores me sinalizavam ser aquilo mesmo que me surgia à cabeça, mas tive que esfregar os olhos para enxergar os contornos. o senhor de simpatia contagiante segurava a menina de uns dois anos de idade virada para frente, para que pudesse admirar o movimento com ele.

era absolutamente inacreditável a maneira como aquela dupla, na simplicidade do seu contentamento, alegrava o ambiente ao redor. o corre-corre atribulado dos paulistanos matinais e seus veículos de pés ou rodas parecia até mais simples. ainda estava atrasada para o trabalho e senti uma vontade imensurável de teletransportar-me a mim mesma naquela cena e poder olhar o mundo com o coração daquela menina no colo do avô.

distraí-me por um minuto observando uns passarinhos que voavam entre as casas vizinhas e, quando voltei o olhar à esquina, a dupla já não estava lá. fui obrigada a voltar à vida presente, mas me senti alimentada por uma sabedoria milenar que só os avós emanam.

a segunda vez em que me vi à janela foi bem mais rápida. o intrigante era a curta distância de tempo que me separava de mim. uma menina nos seus dezenove anos corria em sua saia colorida e cabelos avermelhados ventando sua molequice. agarrada à bolsa de cadernos e tranqueiras para que não se perdessem no caminho, corria despreocupada e intensamente para alcançar sua aula de espanhol.

(bem desejei ver a Elvira, minha professora de espanhol com quem tive afinidade instantânea, à frente. contudo, acredito que ela não estava lá, porque o mais importante resultado daquelas aulas particulares – mais até do que o aprendizado do idioma – era as ideias que me despertavam e a maneira como me faziam sentir.)

o que mudou nestes quatro ou cinco anos – pensei –, se ainda tenho o mesmo comportamento de moleca quase toda vez que saio de casa atrasapressada, cheia de apetrechos confortantes e desnecessários?

talvez, a diferença seja o singelo e significativo fato de que agora me dou conta disso. quem sabe, meus passos já não voem tão leves quanto os dela, mas sinto que ganho uma leveza no olhar, cada vez maior, que me permite observá-la desaparecer, suavemente, entre as casas da curva, ao mesmo tempo em que me desfaço, conscientemente, nesta cena.