domingo, 25 de setembro de 2011

comer o mundo com as mãos


Viver é comer o mundo aos pedaços ou tentar enfiá-lo na boca de uma só vez. Há aqueles que preferem apreciá-lo, sentados à mesa, sobre uma toalha e com a ajuda de quantos pratos, talheres e outros apetrechos a etiqueta pedir. Outros se contentam em degustá-lo sob o intermédio de um guardanapo de papel apenas, que vai chupando seu sabor, ficando melado e, ao final, é preciso lavar as mãos de qualquer jeito. Já eu prefiro devorá-lo pegando bons bocados com as mãos. Vou sentindo sua textura antes mesmo de colocá-lo na boca e, por fim, ainda lambo os dedos – pra onde escorrega a melhor parte. Muitos me chamam de gulosa, mal educada, troglodita. A estes digo que prefiro aproveitar bem sabor por sabor, afinal, cada época tem sua colheita e nem tudo no mundo é “open bar”.

O ser mais faminto que existe é a fome. Sente seu cheiro de longe, chega lambendo os cabelos, mordiscando as unhas e, num surto voraz, rasga a pele e engole tudo, víscera por víscera, músculo por músculo, até corroer os ossos, lentamente cruel. Os dias que ela domina, cotidianos nos lugares mais esquecidos do mundo – lembrados sequer pelas maiores redes de fast food da Terra, famintas por dissipar o maior número de culturas possível -, são dominados também por uma enorme ânsia de caça. O problema é que, com o passar do tempo, a fome termina por comer também essa ânsia e já não se sente fome alguma.

Só existe fome no mundo por um problema de receita, afinal, o armazém da Terra transborda comida que poderia alimentar outro planeta igual a este. Mas acontece que, há muito tempo, começaram a girar a massa do bolo pro lado errado e foi-se criando buracos de famintos e caroços de obesos. Nesses caroços, aglomera-se gente que aparenta estar muito bem alimentada, mas é fraca de vida, porque se entope de fast food que não alimenta, feita de soberba e ignorância; são verdadeiras cascas balofas ocas por dentro. A massa do mundo só não desanda de vez, porque ainda existem famintos, magrelos por fora, mas muito bem nutridos por dentro, que se alimentam de dignidade e amor e conseguem força pra girar no sentido oposto.

Apesar de existir fome, há também uma variedade sem fim de buffets de self service espalhados por aí. Quem sofre com eles são os indecisos e ansiosos que, no desespero de provar tudo o que veem, acabam não conseguindo comer nada antes que a comida esfrie ou, pior, o restaurante feche. O mundo é feito de surpresas que se descobre conforme se forma o paladar. Essa formação é um processo de aprendizado que não tem certo ou errado, apenas uma regra: salvo os ingredientes venenosos, não se pode ter medo de experimentar sabores desconhecidos, afinal, são eles que expandem nossas papilas gustativas e nos fazem dar a volta ao mundo sem sair do lugar. A vida é feita também de ingredientes constantes, alguns tão enjoativos que podem provocar aversão ou  intolerância alimentar só de se sentir o cheiro – é o caso da injustiça, mais um ingrediente utilizado pelas redes de fast food -, outros tão deliciosos que se pode comer todo o dia, não enjoar nunca e ainda pedir mais – como arroz e feijão ou pão.

Como o mundo é farto de comida, é farto também de gula. Alguns chamam de guloso àquele que faça banquete com todas as regalias e toalhas e talheres e babados e cerejas em frente a uma fila de famintos, sem oferecer pedaço sequer. Neste caso, há uma confusão de temperos nas palavras, afinal, a isso não se chama gula, e sim crueldade. Outros chamam de gulosos àqueles que passam horas, dias, semanas preparando as mais elaboradas guloseimas com enormes doses de carinho e dedicação para dividir com pessoas queridas. Isto não é gula, se chama celebração e é outro ingrediente necessário para o bom andamento da massa do nosso bolo.

No fim das contas, a vida  é mesmo um festival de sabores do café da manhã à ceia. E, como não poderia deixar de ser, no cardápio, o melhor de tudo fica pro final, como sobremesa. O amor é um mousse de chocolate tão intenso que preenche todas as papilas gustativas da língua e confunde as sinapses do cérebro de prazer. Ainda transborda, molhando os cabelos, correndo nas veias, inundando as pupilas – por isso dizem que é cego – e entrando pelos ouvidos. O sabor é tanto que, para apreendê-lo, é preciso absorvê-lo por todos os poros e, ainda assim, sempre sobra um pouco para lambuzar os dedos e escorrer pelo chão até o fim do mundo.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Beira

quando vou à praia
me sinto à beira do mundo
o mar fosse janela pro espaço
este mar capaz de pôr fim ao espaço dos homens,
seu mundo
é um outro mundo por si
 
gosto de estar à beira das coisas
lá se enxerga longe e perto
se avista entre
se entende coisas que não se entendem em outro lugar
só na beirada,
quase mergulhando no outro
 
já que não se pode sair do próprio corpo
criamos corpos cheios de beiradas
pontos de contato, eminência
de a minha beira desaguar na sua
como borderliner de loucura
as fronteiras se dissolvem, se dilatam
se suprimem, se comprimem
à beira de se refazerem,
novamente fortes

as beiradas não chegam a se desfazer
mas desfazem o mundo como o vemos
à beira, mudam-se pontos de vista
reconstroem-se conceitos
avistam-se novos horizontes
novas bordas universais,
quase pontos cardeais estendidos
 
quando estou à beira da cidade
me sinto grande
posso observar muitas beiradas à distância
passear entre elas
provar vários mirantes a cada perímetro
 
ao mergulhar na metrópole
as beiras entre as coisas se estreitam
me sinto pequena de comprimida
de não conseguir enxergar todas as bordas que me cercam
minha mente se perde juntando e separando fronteiras
que acabo por perder minhas próprias beiradas
e fragmentar minha identidade
à beira d’um arranha-céu interminável,
quase sem borda

nem toda beira é essencial
mas é bom que existam beiradas
não fosse assim, todas as cores se misturariam
e não existiria cor alguma
o mundo não teria nuances
nem emoções
não seria, sequer, vazio
seria apenas massa inerte,
sem desejo

mas à beira do mar
ouvem-se as vozes do oceano
e costuma-se desejar muitas coisas
como saber o que há pr’além dele
ou abandonar a beira num mergulho
com ou sem volta.

domingo, 5 de junho de 2011

escorrer-se

vou gotejando lentamente, enquanto ando pelas ruas
caminho caminhos alheios misturados aos meus devaneios
chovo cada dia com uma intensidade particular
me molho em outras chuvas e vou molhando meus vizinhos
converso com garoas tranquilas e tempestades indomáveis
que vão colorindo o céu, cada chuvisco com sua cor
cada palavra é uma gota, todo gesto escorre vidro abaixo
formando um mosaico derretido de vidas entrelaçadas
aquarela borrada de retalhos coincidentes
refletem cores transcendentes na translucidez do destino que as une
ou do propósito que as motiva a colorir
vou chovendo, porque sem chuva não há vida
viver é escorrer no tempo e no espaço
levando pétala e pedra, deixando marcas de caminho
que logo serão levadas por outra enxurrada
da chuva que nunca seca

De volta!

Porque ande o quanto ande, mude o quanto mude, sempre tenho algo a declarar.;'

E pra comemorar a reinauguração deste blog, uma poesia tirada da gaveta:


Dispersa

Não tenho vontade de fazer nada

Aqui olhando fotos furadas

Pensamentos com asas


Mas já faz um ano desde o mês passado

Tem cem quilômetros até o vizinho

E mil acordes sobre as canções
 

Não me reconheço ontem

Não sei de mim amanhã

Não conheço os outros hoje

Sei que é passageiro
 

Saí do passado sem passagem de volta

Sigo em frente sem mapa

Não me localizo em coordenadas

Tenho direções aladas