sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

.fim de festa

Não sei qual o problema das pessoas com os finais das festas. Quando todos os que não habitam a casa habitualmente vão embora. E ficam as luzes acesas, os sofás desarrumados, copos nos cantos mais inusitados, restos de tudo quanto é coisa, os móveis levemente movidos, a fagulha dos talos de vela pingando cera em estalactites e a trilha sonora, que passa a se sobressair.
Toda essa desordem costuma incomodar terrivelmente os moradores do local, que instantaneamente se transformam nos mais ágeis arrumadores, prontos para restabelecer a mais perfeita ordem do ambiente.
Tão apressados, que despercebem as emoções que ainda ecoam no ar. O abajur piscando aquelas juras de amor escondidas, as torneiras tilintando as fofocas da cozinha, o ventilador ainda dissipando o burburinho do pessoal, o pé da cadeira gritando a dor do choque com o dedão da comadre que, por sua vez, gritava com o compadre. Um retrato do que foi a comemoração em seus mais detalhados detalhes, esvaindo-se calmamente, conforme se abaixa o som duma faixa de CD.
Mas o tom da fotografia varia de acordo com os olhos que a enxergam. Talvez por isso alguns se apressem tanto para apagá-la, enquanto outros saboreiam o finalzinho do gosto que fica na boca. Afinal, o fim da festa depende exclusivamente do seu meio e seu início.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Os filhos de Papai Noel*

“Não existe época do ano mais agradável e produtiva, para o mundo da indústria e do comércio, que o Natal e as semanas que o antecedem. (...) Entre os homens de negócios, as pesadas disputas de interesses se aplacam e dão lugar a uma nova competição: quem oferece de modo mais gracioso o presente mais distinto e original.
(...)
O chefe do Departamento Pessoal entrou no depósito com uma barba postiça numa das mãos: ‘Ei, você!’, disse a Marcovaldo. ‘Experimente um pouquinho como fica com esta barba. Perfeito! O natal é você. Venha aqui em cima, rápido. Vai ganhar um prêmio especial se fizer cinqüenta entregas a domicílio por dia.’
(...)
A recompensa às vezes era considerável e Marcovaldo poderia se dar por satisfeito, mas algo lhe faltava. Todas as vezes, antes de tocar a campainha, seguido por Michelino [um de seus filhos], saboreava antecipadamente a admiração de quem, ao abrir, encontrasse pela frente Papai Noel em pessoa; esperava saudações, curiosidade, gratidão. E todas as vezes era sempre recebido como o carteiro que leva o jornal todos os dias.
Tocou a campainha de uma casa luxuosa. Uma governanta abriu.
- Ah, mais um pacote, da parte de quem?
- A SBAV [nome da empresa em que Marcovaldo trabalha] deseja...
- Bom, traga aqui. – E procedeu Papai Noel por um corredor cheio de tapeçarias, tapetes e vasos de porcelana. Michelino, de olhos arregalados, ia atrás do pai.
(...)
Os brinquedos, espalhados em cima de um grande tapete, eram tantos como numa loja de brinquedos, sobretudo complicados engenhos eletrônicos e modelos de astronaves. Sobre o tapete, num canto livre, encontrava-se um menino deitado, de bruços, aparentando nove anos, com uma expressão amuada e entediada. Folheava um livro ilustrado, como se tudo aquilo que havia ao redor não lhe dissesse respeito.
- Gianfranco, vamos, Gianfranco – disse a governanta -, viu que Papai Noel está de volta com outro presente?
- Trezentos e doze – suspirou o menino sem erguer os olhos do livro. – Coloque ali.
- É o tricentésimo décimo segundo presente que chega – disse a governanta – Gianfranco é tão esperto que conta todos, sua grande paixão é contar.
Na ponta dos pés, Marcovaldo e Michelino saíram da casa.
- Papai, aquele é um menino pobre? – perguntou Michelino.
Marcovaldo estava ocupado realocando em ordem os pacotes e não respondeu logo. Mas, depois de um instante, apressou-se em protestar:
- Pobre? Que está dizendo? Sabe quem é o pai dele? É o presidente da União para o Incremento das Vendas Natalinas! P comendador... – Interrompeu-se, pois não estava vendo Michelino. – Michelino, Michelino! Onde você foi parar? – Desaparecera.
(...)
Ao chegar [em casa], encontrou Michelino junto com os irmãos, tranqüilo, tranqüilo.
- Me conta, onde se meteu?
- Em casa, pegando os presentes... Os presentes para aquele menino pobre...
- Hein? Quem?
- Aquele que estava tão triste... aquele da vila com a árvore de natal...
(...)
- Imaginem! – disse Marcovaldo. – Tinha mesmo necessidade dos presentes de vocês para ficar contente!
- Sim, sim, dos nossos... Correu logo para arrancar o papel e ver o que era...
- E o que era?
- O primeiro era um martelo: aquele martelo grande, redondo, de madeira...
- E ele?
- Pulava de alegria! Pegou nele e começou a usá-lo!
- Como?
- Quebrou todos os brinquedos! E todos os cristais! Depois pegou o segundo presente...
- O que era?
- Um estilingue. Precisava ver que felicidade... Quebrou todas as bolas de vidro da árvore de natal. Depois passou para os lustres...
- Basta, basta, não quero ouvir mais nada! E... o terceiro presente?
- Não tínhamos mais nada para oferecer, e então embrulhamos uma caixa de fósforos de cozinha com papel prateado. Foi o presente que o deixou mais contente. Dizia: ‘Fósforos, não me deixam nem chegar perto deles!’. Começou a riscá-los, e...
- E...?
- ...pôs fogo em tudo!
Marcovaldo pôs as mãos nos cabelos.
- Estou arruinado!
No dia seguinte, apresentando-se no trabalho, sentia a tempestade que estava se formando. Vestiu-se de Papai Noel num piscar de olhos, carregou para a motinho os pacotes a serem entregues, já admirado de que ainda ninguém lhe tivesse dito nada, quando viu caminhando ao seu encontro três chefes, o de Relações Públicas, o de Marketing e o do Departamento Comercial.
- Alto! – ordenaram-lhe – descarregue tudo, imediatamente!
Descobriram’, pensou Marcovaldo, e já se via demitido.
- Rápido! É preciso substituir os pacotes! – disseram os chefes de departamento. A União para o Incremento das Vendas Natalinas criou uma campanha para o lançamento do Presente Destrutivo!
- Assim, de repente... – comentou um deles. – Poderiam ter pensando nisso antes...
- Foi uma descoberta inesperada do presidente – explicou um outro. – Parece que seu filho recebeu artigos-brindes moderníssimos, acho que japoneses, e pela primeira vez o menino se divertiu para valer...
- O que mais interessa – acrescentou um terceiro – é que o Presente Destrutivo serve para destruir artigos de todo gênero: era isso o que faltava para acelerar o timo do consumo e reativar o mercado... Tudo num tempo muito curto e ao alcance de uma criança... O presidente da União viu abrir-se um novo horizonte, está no sétimo céu do entusiasmo...”

*Recortes do conto do mestre Ítalo Calvino em seu livro “Marcovaldo ou As estações na cidade”, que narra a relação de um operário com a falta de natureza do ambiente urbano e o consumismo, uma crítica realista, bem humorada, e com a leveza que o autor nunca se deixou perder.

Criticar o consumismo natalino pode ter virado clichê, mas mesmo depois de tantas décadas em que essa mania persiste, ainda é raro encontrar um texto com uma perspectiva intrigante sobre o assunto. Por isso, valeu a pena digitar essa parte do conto. Também vale a pena ler o livro todo, se vale!

Aliás, se for consumir no natal, que tal, ao menos, consumir cultura?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Minha bíblia por um pão com arroz

As coisas mais corriqueiras da vida frequentemente passam despercebidas, parecem absolutamente desimportantes perto dos infindáveis compromissos sempre importantes dos paulistanos. Tais compromissos ajudam a aumentar os níveis de congestionamentos que, sob qualquer chuvinha, param a cidade. E quando a chuva não é qualquer, é muita, acontece o que muitos conhecem apenas da Bíblia ou de contos fantásticos: algo apelidado de caos. Foi isso o que aconteceu hoje e que me impediu de ir trabalhar, então, fui obrigada a prestar atenção em algumas pequenas coisas do meu cotidiano e descobri que elas podem guardar segredos muito maiores do que a importância que lhes é dada – ou podem apenas ser mote de uma história engraçada.

Pois bem, no fatídico dia do caos na cidade, fui ajudar minha mãe a fazer o almoço em casa.

- Bruna, faça o arroz.

Certo. Ao pegar o “tuppeware” do dito cujo, percebi que algo se sobressaía entre os grãos. Pela noite mal dormida e a falta de óculos, não conseguia discernir muito bem, mas me parecia absurdo que houvesse um grão assim tão maior que os outros e com uma coloração bem diferente. Depois de esfregar bem os olhos, finalmente enxerguei: tratava-se de um pão, meio duro, bem no meio do arroz.

Tá, não era lá um pedaço de nave espacial ou algo tão exótico quanto isso, mas convenhamos que não é lá muito comum encontrar um pão francês devidamente guardado no pote de arroz, devia ter caído e sido esquecido ali há tempos, nossa, como não prestamos atenção às coisas que fazemos por causa desse dia-a-dia louco e... (minha boca interrompeu minha própria digressão)

- Mãe, o que, raios, este pão velho e endurecido está fazendo dentro do pote de arroz? – disparei, esperando receber uma resposta tão inconclusa quanto a minha.

- Ah, é o Pão de Santo Antônio, oras! – despejou ela, com uma naturalidade de quem até usaria a sigla PSA para se referir ao dito alimento.

- Aaaaaah! E o que ser isso? – indaguei, no mesmo desesclarecimento.

- É o pão que a Vó levou pra benzer na missa no Dia de Santo Antônio. Tem que guardar ele aí pra não apodrecer até o próximo ano, quando tiver a missa de novo.

Ao que utilizei mais um do meu estoque quase vazio de “aaah”s, seguido de:

- Mas pra que ele serve?

- Bom, dizem que Santo Antônio é o santo casamenteiro, né...

- Mas, que eu saiba, você já casou, não?

- É, mas...

- Então espero que você não tenha nenhum plano de pedir a qualquer meio possível ou impossível (como parece mesmo ser o caso do pão no arroz) para que eu me case! – isso fui eu tentando dar uma de durona.

- Nãao, mas Santo Antônio não atende só pedidos de casamento... Ele cuida também do bem estar da família, da casa, sabe?

- Sei... Então o tal santo se materializa num pão francês duro e faz com que as pessoas se dêem bem ao depositar alguma substância conhecida como “benção” no arroz que elas comem... Essa tal de benção não é outro nome pra algo do tipo... Maconha?

- Menina! Até parece que você não fez catecismo! Benção é uma coisa santa...

- Aaah, por isso então que o nome da mãe de Jesus é Maria, só pode ser de Maria Joana, de Marijuana... Agora tudo faz sentido! Por isso que Jesus era tão paz e amor e... – ao ser fuzilada pelo olhar da minha mãe, que parecia ameaçar que eu não tivesse direito ao almoço depois dessa, resolvi abortar a sabatina – Ok, ok. É, o pão até que faz sentido.

- Claro que faz. Então coloque ele de volta na tigela, bem mergulhado no arroz!

- Sim, senhora!

Naquele dia, não tive dor de barriga após comer o arroz, nem outro efeito colateral que a tal benção poderia provocar, e também não fiquei mais amorosa, nem mais irritada. O fato é que o pão no arroz me fez perceber o quanto nos prendemos a crenças por toda parte. O problema não é ter as crenças, o povo brasileiro, inclusive, é mais interessante por causa das milhares de crenças e superstições que esconde em cada canto do seu cotidiano. O problema é a maneira como as pessoas costumam defender essas crenças ao lidar com outros que não as possuem.

Quando alguém esbarra numa crença de outro, esse outro parece assumir uma postura inevitável: estufa o peito, como quem vai defender uma multidão de crianças famintas, e fala com ar de superioridade de quem já entende uma verdade absoluta, e que precisa passar ao pobre que não entende; por um minuto, esquece que está falando apenas de algo como um pão no arroz.

Não deixemos nossas crenças por um ceticismo que chega a ser quase uma doutrina tão forte quanto as das Igrejas. Mantenhamos elas colorindo becos e cantos das casas, pra que alguém as descubra num dia de chuva. Mas não as tomemos como uma bíblia, que, não raro, é tomada quase como uma arma. Deixemos a diversidade aflorar.

Agora me pergunto: o que haverá dentro do pote de feijão?

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

caosacidade. causacidade.

um dia surgiu o caos
o caos desconstrutor
dizem, na verdade, que ele sempre existiu por aqui
só estava escondido por trás da garoa, da neblina, da fumaça dos carros
mas todos teimavam em construir sem parar
até que ele evaporou duma vez e formou um colchão nebuloso na frente do sol
e caiu sobre a cidade, fazendo a cidade cair

ainda bem.

porque depois de toda chuva
só pode mesmo surgir o sol
que também é caos, mas é luz
um tipo de caos gerador
que movimente essa cidade, que de tão frenética, parou

mas fica a pergunta
é a cidade que gera o caos?
ou o caos que gera a cidade?

dilúvio metropolitano'"

paulistano é tão viciado em trabalho que precisa que a natureza pare tudo e diga: hoje é dia de ficar em casa.

se esta cidade fosse uma bebida, com certeza, seria café expresso extra-forte.
por isso, reformulemos o ditado: não faça tempestade em xícara de café,
aproveite pra tomar um chá!
- de camomila, que São Paulo tá precisando.