sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

.fim de festa

Não sei qual o problema das pessoas com os finais das festas. Quando todos os que não habitam a casa habitualmente vão embora. E ficam as luzes acesas, os sofás desarrumados, copos nos cantos mais inusitados, restos de tudo quanto é coisa, os móveis levemente movidos, a fagulha dos talos de vela pingando cera em estalactites e a trilha sonora, que passa a se sobressair.
Toda essa desordem costuma incomodar terrivelmente os moradores do local, que instantaneamente se transformam nos mais ágeis arrumadores, prontos para restabelecer a mais perfeita ordem do ambiente.
Tão apressados, que despercebem as emoções que ainda ecoam no ar. O abajur piscando aquelas juras de amor escondidas, as torneiras tilintando as fofocas da cozinha, o ventilador ainda dissipando o burburinho do pessoal, o pé da cadeira gritando a dor do choque com o dedão da comadre que, por sua vez, gritava com o compadre. Um retrato do que foi a comemoração em seus mais detalhados detalhes, esvaindo-se calmamente, conforme se abaixa o som duma faixa de CD.
Mas o tom da fotografia varia de acordo com os olhos que a enxergam. Talvez por isso alguns se apressem tanto para apagá-la, enquanto outros saboreiam o finalzinho do gosto que fica na boca. Afinal, o fim da festa depende exclusivamente do seu meio e seu início.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Os filhos de Papai Noel*

“Não existe época do ano mais agradável e produtiva, para o mundo da indústria e do comércio, que o Natal e as semanas que o antecedem. (...) Entre os homens de negócios, as pesadas disputas de interesses se aplacam e dão lugar a uma nova competição: quem oferece de modo mais gracioso o presente mais distinto e original.
(...)
O chefe do Departamento Pessoal entrou no depósito com uma barba postiça numa das mãos: ‘Ei, você!’, disse a Marcovaldo. ‘Experimente um pouquinho como fica com esta barba. Perfeito! O natal é você. Venha aqui em cima, rápido. Vai ganhar um prêmio especial se fizer cinqüenta entregas a domicílio por dia.’
(...)
A recompensa às vezes era considerável e Marcovaldo poderia se dar por satisfeito, mas algo lhe faltava. Todas as vezes, antes de tocar a campainha, seguido por Michelino [um de seus filhos], saboreava antecipadamente a admiração de quem, ao abrir, encontrasse pela frente Papai Noel em pessoa; esperava saudações, curiosidade, gratidão. E todas as vezes era sempre recebido como o carteiro que leva o jornal todos os dias.
Tocou a campainha de uma casa luxuosa. Uma governanta abriu.
- Ah, mais um pacote, da parte de quem?
- A SBAV [nome da empresa em que Marcovaldo trabalha] deseja...
- Bom, traga aqui. – E procedeu Papai Noel por um corredor cheio de tapeçarias, tapetes e vasos de porcelana. Michelino, de olhos arregalados, ia atrás do pai.
(...)
Os brinquedos, espalhados em cima de um grande tapete, eram tantos como numa loja de brinquedos, sobretudo complicados engenhos eletrônicos e modelos de astronaves. Sobre o tapete, num canto livre, encontrava-se um menino deitado, de bruços, aparentando nove anos, com uma expressão amuada e entediada. Folheava um livro ilustrado, como se tudo aquilo que havia ao redor não lhe dissesse respeito.
- Gianfranco, vamos, Gianfranco – disse a governanta -, viu que Papai Noel está de volta com outro presente?
- Trezentos e doze – suspirou o menino sem erguer os olhos do livro. – Coloque ali.
- É o tricentésimo décimo segundo presente que chega – disse a governanta – Gianfranco é tão esperto que conta todos, sua grande paixão é contar.
Na ponta dos pés, Marcovaldo e Michelino saíram da casa.
- Papai, aquele é um menino pobre? – perguntou Michelino.
Marcovaldo estava ocupado realocando em ordem os pacotes e não respondeu logo. Mas, depois de um instante, apressou-se em protestar:
- Pobre? Que está dizendo? Sabe quem é o pai dele? É o presidente da União para o Incremento das Vendas Natalinas! P comendador... – Interrompeu-se, pois não estava vendo Michelino. – Michelino, Michelino! Onde você foi parar? – Desaparecera.
(...)
Ao chegar [em casa], encontrou Michelino junto com os irmãos, tranqüilo, tranqüilo.
- Me conta, onde se meteu?
- Em casa, pegando os presentes... Os presentes para aquele menino pobre...
- Hein? Quem?
- Aquele que estava tão triste... aquele da vila com a árvore de natal...
(...)
- Imaginem! – disse Marcovaldo. – Tinha mesmo necessidade dos presentes de vocês para ficar contente!
- Sim, sim, dos nossos... Correu logo para arrancar o papel e ver o que era...
- E o que era?
- O primeiro era um martelo: aquele martelo grande, redondo, de madeira...
- E ele?
- Pulava de alegria! Pegou nele e começou a usá-lo!
- Como?
- Quebrou todos os brinquedos! E todos os cristais! Depois pegou o segundo presente...
- O que era?
- Um estilingue. Precisava ver que felicidade... Quebrou todas as bolas de vidro da árvore de natal. Depois passou para os lustres...
- Basta, basta, não quero ouvir mais nada! E... o terceiro presente?
- Não tínhamos mais nada para oferecer, e então embrulhamos uma caixa de fósforos de cozinha com papel prateado. Foi o presente que o deixou mais contente. Dizia: ‘Fósforos, não me deixam nem chegar perto deles!’. Começou a riscá-los, e...
- E...?
- ...pôs fogo em tudo!
Marcovaldo pôs as mãos nos cabelos.
- Estou arruinado!
No dia seguinte, apresentando-se no trabalho, sentia a tempestade que estava se formando. Vestiu-se de Papai Noel num piscar de olhos, carregou para a motinho os pacotes a serem entregues, já admirado de que ainda ninguém lhe tivesse dito nada, quando viu caminhando ao seu encontro três chefes, o de Relações Públicas, o de Marketing e o do Departamento Comercial.
- Alto! – ordenaram-lhe – descarregue tudo, imediatamente!
Descobriram’, pensou Marcovaldo, e já se via demitido.
- Rápido! É preciso substituir os pacotes! – disseram os chefes de departamento. A União para o Incremento das Vendas Natalinas criou uma campanha para o lançamento do Presente Destrutivo!
- Assim, de repente... – comentou um deles. – Poderiam ter pensando nisso antes...
- Foi uma descoberta inesperada do presidente – explicou um outro. – Parece que seu filho recebeu artigos-brindes moderníssimos, acho que japoneses, e pela primeira vez o menino se divertiu para valer...
- O que mais interessa – acrescentou um terceiro – é que o Presente Destrutivo serve para destruir artigos de todo gênero: era isso o que faltava para acelerar o timo do consumo e reativar o mercado... Tudo num tempo muito curto e ao alcance de uma criança... O presidente da União viu abrir-se um novo horizonte, está no sétimo céu do entusiasmo...”

*Recortes do conto do mestre Ítalo Calvino em seu livro “Marcovaldo ou As estações na cidade”, que narra a relação de um operário com a falta de natureza do ambiente urbano e o consumismo, uma crítica realista, bem humorada, e com a leveza que o autor nunca se deixou perder.

Criticar o consumismo natalino pode ter virado clichê, mas mesmo depois de tantas décadas em que essa mania persiste, ainda é raro encontrar um texto com uma perspectiva intrigante sobre o assunto. Por isso, valeu a pena digitar essa parte do conto. Também vale a pena ler o livro todo, se vale!

Aliás, se for consumir no natal, que tal, ao menos, consumir cultura?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Minha bíblia por um pão com arroz

As coisas mais corriqueiras da vida frequentemente passam despercebidas, parecem absolutamente desimportantes perto dos infindáveis compromissos sempre importantes dos paulistanos. Tais compromissos ajudam a aumentar os níveis de congestionamentos que, sob qualquer chuvinha, param a cidade. E quando a chuva não é qualquer, é muita, acontece o que muitos conhecem apenas da Bíblia ou de contos fantásticos: algo apelidado de caos. Foi isso o que aconteceu hoje e que me impediu de ir trabalhar, então, fui obrigada a prestar atenção em algumas pequenas coisas do meu cotidiano e descobri que elas podem guardar segredos muito maiores do que a importância que lhes é dada – ou podem apenas ser mote de uma história engraçada.

Pois bem, no fatídico dia do caos na cidade, fui ajudar minha mãe a fazer o almoço em casa.

- Bruna, faça o arroz.

Certo. Ao pegar o “tuppeware” do dito cujo, percebi que algo se sobressaía entre os grãos. Pela noite mal dormida e a falta de óculos, não conseguia discernir muito bem, mas me parecia absurdo que houvesse um grão assim tão maior que os outros e com uma coloração bem diferente. Depois de esfregar bem os olhos, finalmente enxerguei: tratava-se de um pão, meio duro, bem no meio do arroz.

Tá, não era lá um pedaço de nave espacial ou algo tão exótico quanto isso, mas convenhamos que não é lá muito comum encontrar um pão francês devidamente guardado no pote de arroz, devia ter caído e sido esquecido ali há tempos, nossa, como não prestamos atenção às coisas que fazemos por causa desse dia-a-dia louco e... (minha boca interrompeu minha própria digressão)

- Mãe, o que, raios, este pão velho e endurecido está fazendo dentro do pote de arroz? – disparei, esperando receber uma resposta tão inconclusa quanto a minha.

- Ah, é o Pão de Santo Antônio, oras! – despejou ela, com uma naturalidade de quem até usaria a sigla PSA para se referir ao dito alimento.

- Aaaaaah! E o que ser isso? – indaguei, no mesmo desesclarecimento.

- É o pão que a Vó levou pra benzer na missa no Dia de Santo Antônio. Tem que guardar ele aí pra não apodrecer até o próximo ano, quando tiver a missa de novo.

Ao que utilizei mais um do meu estoque quase vazio de “aaah”s, seguido de:

- Mas pra que ele serve?

- Bom, dizem que Santo Antônio é o santo casamenteiro, né...

- Mas, que eu saiba, você já casou, não?

- É, mas...

- Então espero que você não tenha nenhum plano de pedir a qualquer meio possível ou impossível (como parece mesmo ser o caso do pão no arroz) para que eu me case! – isso fui eu tentando dar uma de durona.

- Nãao, mas Santo Antônio não atende só pedidos de casamento... Ele cuida também do bem estar da família, da casa, sabe?

- Sei... Então o tal santo se materializa num pão francês duro e faz com que as pessoas se dêem bem ao depositar alguma substância conhecida como “benção” no arroz que elas comem... Essa tal de benção não é outro nome pra algo do tipo... Maconha?

- Menina! Até parece que você não fez catecismo! Benção é uma coisa santa...

- Aaah, por isso então que o nome da mãe de Jesus é Maria, só pode ser de Maria Joana, de Marijuana... Agora tudo faz sentido! Por isso que Jesus era tão paz e amor e... – ao ser fuzilada pelo olhar da minha mãe, que parecia ameaçar que eu não tivesse direito ao almoço depois dessa, resolvi abortar a sabatina – Ok, ok. É, o pão até que faz sentido.

- Claro que faz. Então coloque ele de volta na tigela, bem mergulhado no arroz!

- Sim, senhora!

Naquele dia, não tive dor de barriga após comer o arroz, nem outro efeito colateral que a tal benção poderia provocar, e também não fiquei mais amorosa, nem mais irritada. O fato é que o pão no arroz me fez perceber o quanto nos prendemos a crenças por toda parte. O problema não é ter as crenças, o povo brasileiro, inclusive, é mais interessante por causa das milhares de crenças e superstições que esconde em cada canto do seu cotidiano. O problema é a maneira como as pessoas costumam defender essas crenças ao lidar com outros que não as possuem.

Quando alguém esbarra numa crença de outro, esse outro parece assumir uma postura inevitável: estufa o peito, como quem vai defender uma multidão de crianças famintas, e fala com ar de superioridade de quem já entende uma verdade absoluta, e que precisa passar ao pobre que não entende; por um minuto, esquece que está falando apenas de algo como um pão no arroz.

Não deixemos nossas crenças por um ceticismo que chega a ser quase uma doutrina tão forte quanto as das Igrejas. Mantenhamos elas colorindo becos e cantos das casas, pra que alguém as descubra num dia de chuva. Mas não as tomemos como uma bíblia, que, não raro, é tomada quase como uma arma. Deixemos a diversidade aflorar.

Agora me pergunto: o que haverá dentro do pote de feijão?

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

caosacidade. causacidade.

um dia surgiu o caos
o caos desconstrutor
dizem, na verdade, que ele sempre existiu por aqui
só estava escondido por trás da garoa, da neblina, da fumaça dos carros
mas todos teimavam em construir sem parar
até que ele evaporou duma vez e formou um colchão nebuloso na frente do sol
e caiu sobre a cidade, fazendo a cidade cair

ainda bem.

porque depois de toda chuva
só pode mesmo surgir o sol
que também é caos, mas é luz
um tipo de caos gerador
que movimente essa cidade, que de tão frenética, parou

mas fica a pergunta
é a cidade que gera o caos?
ou o caos que gera a cidade?

dilúvio metropolitano'"

paulistano é tão viciado em trabalho que precisa que a natureza pare tudo e diga: hoje é dia de ficar em casa.

se esta cidade fosse uma bebida, com certeza, seria café expresso extra-forte.
por isso, reformulemos o ditado: não faça tempestade em xícara de café,
aproveite pra tomar um chá!
- de camomila, que São Paulo tá precisando.

sábado, 28 de novembro de 2009

mais que garoa'''

quando chove por aqui, chove a cidade inteira
derretem-se as fachadas dos arranha-céus
e as esperanças de chegar cedo em casa
a água cai como as roupas dos varais esquecidos
e os cães trovejam sua audição privilegiada
há até trânsito de guarda-chuvas nas calçadas
e as gotas fazem arte nos retrovisores das motos
os chorões perdem o controno de suas folhas
e as flores ficam ainda mais coloridas
auréolas formam-se ao redor dos postes de luz
e até as lombadas crescem com a irrigação
um pássaro relampeja debaixo do ponto de ônibus
e alguém chove pensamentos janela abaixo
enquanto os penteados fogem sem classe alguma
e as crianças viram raios nas poças d'água

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

retalhos d'um alvorecer

sua pele de manhã é moldura pro meu dia
as calçadas molhadas que abraçam as ruas
não são mais nuas que nossa história crua
vezemquando vestida de nascer ou pôr-do-sol

eu vou
por entre entradas de bandeiras e de corações
atravessando becos tortos e finas canções
como um tango-descompasso de quem acertou

você vem
sem delongas nas milongas dessa meia-luz
driblando enxames de incertezas que não nos conduz
e chega em tempo sem ponteiro que só a gente tem

e a gente fica
muito junto, sempre perto até não enjoar
mesmo indo e vindo longe de qualquer lugar
porque sua pele à noite é textura pros meus sonhos

e é tão inexplicável que de verdade a gente brinca

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O maleiro de Pinheiros

Bigode de mariachi. Cabeça raspada ao vento. Blusa rosa-menina. Pele de sol tomado. Mala de viagem do avô. Mochila moderna para mochileiros. All star no estilo da metrópole. A cara de São Paulo. Mas olhar de forasteiro. Domava a faixa de pedestres desafiando os carros no farol verde.

Até que chegou o carro de Clara, com ela dentro. Olhou pra motorista e precipitou-se para a calçada. Ela passou a seu lado, mas o farol continuava verde.

A moça ficou o dia todo pensando no paradeiro daquele personagem peculiar: d'onde viria? Por onde andaria? Teria domado todas as feras citadinas em sua trilha até a gruta que o refugiaria?

Ou seria um viajante romântico? Compraria um mapa e uma flor no farol - para oferecer a uma moça e pedir-lhe indicação de caminhos. E se fosse um ator, intérprete de Pancho Villa, que cheva à cidade para uma temporada de apresentações? E se os espetáculos fossem na rua e ele tirasse o chapéu para pedir dinheiro? E se fosse um cigano andarilho, coletando moedas, amores e misticismos pelas calçadas?

As suposições possíveis quase não a deixaram dormir.

*

Uma semana depois, Clara precisou voltar ao bairro onde encontrara o suposto forasteiro. A mala que ele carregava lhe deu uma ideia de presente de aniversário para seu avô, que viajaria à Itália (sua terra natal) em breve. Já nem pensava mais no sujeito das suposições sonâmbulas. Sua tia lhe dera a indicação da loja de malas, chapéus e outros acessórios antigos em Pinheiros.

Tocou a campainha e subiu os pequenos degraus até a loja alojada numa casa antiga. Um senhor alto de cabelos brancos ajudou-a a escolher a valise perfeita. Mas estava riscada.

- Adamastor! - gritou o homem.

Prontamente, apareceu um rapaz baixo, magro, pele de sol tomado, bigode de... mariachi! O "forasteiro"!

- Arrume este risco para a moça, por favor.

Ao que ele balançou a cabeça simpaticamente, sem proferir palavra, o que aguçou ainda mais a curiosidade de Clara sobre o tipo.

- Não quer esperar lá fora no nosso jardim, senhorita? Temos lindas roseiras! Ele lhe levará a mala em seguida. - Convidou o dono da loja.

Aceitou o convite balançando a cabeça. Aquele "senhorita" salpicava seus tímpanos como um gotejo de passado que escapulia às barreiras dos tempos. Já as rosas pareciam mais reais, havia uma branca tão aberta quanto o sol de verão...

- Mas vermelho é a sua cor - disse Adamastor, às suas costas, com uma rosa vermelha e a mala nas mãos.

- Que susto! - sobressaltou-se a moça - Mas como você sabe que prefiro vermelho?

- Não sabia, agora sei - retrucou, abrindo um sorriso e entregando-lhe a mala e a flor.

Clara segurou-os, mas não se afastou. Rodeando-o com a cabeça, começou o interrogatório:

- Você se lembra de mim?

- Creio que não. Deveria?

- Provavelmente não... De onde você vem? Digo, onde nasceu, onde mora?

- Aqui mesmo. Nasci numa casa na rua debaixo, mas trabalho com meu tio-avô desde menino nesta loja - essas coisas antigas são minha paixão. Já tinha vindo aqui antes?

- Não, trombei com você outro dia num farol, aqui perto. Achei que era um viajante, porque levava uma mala como esta.

- Ah! Bem, de certa forma, pode-se dizer que sou mesmo um viajante. Viajo por essas ruas todo dia. Mas aquele dia, devia estar levando uma mala pra passear.

- Uma mala?

- Sim, é preciso fazer isso de vez em quando, senão elas esquecem como é que se viaja e quando os clientes as levam, reclamam que se perdem ou não funcionam direito. Essa aí que você está levando, por exemplo, é uma das mais passeadeiras, adora descidas e pores-do-sol!

Clara respondeu com um riso intrigado.

- E você, pra onde vai? - perguntou Adamastor.

- Achei que ia perguntar de onde venho...

- Isso não me interessa agora. Diga, pra onde vai?

- Não sei, acho que voltar pra casa, pra embrulhar o presente.

- Já que você acha, eu acho que não. Vamos passear com a Marlinda, sua mala. Topa?

A moça hesitou um pouco, e disse:

- Vamos, já está mesmo na hora do pôr-do-sol.

domingo, 15 de novembro de 2009

>da série Poemário Relâmpago

*
O dia em que Laurita aprendeu a colorir
num dia comum, acordou com um sorriso no rosto sem motivo. em vez de guardá-lo, saiu por aí alegrando a vida.



Arranharam meu carro
mas foi uma árvore
então tudo bem
perfiro vê-lo caindo aos pedaços
a não assistir o balanço das folhas



Se ainda tenho alguma sanidade
é porque paro pra fazer loucuras e escrever asneiras.

*

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

loucos: Precisa-se!

Chamam louco aquele que sorri
num dia tão nublado e feio
Ou quem cumprimenta a todos
numa sala tão fria e fresca
Maluco é aquele que dança
no meio do trânsito infernal
O que agradece um gesto simples
tem entrada livre no manicômio
E aquele que não segue a moda
encaixa-se no estilo doidão

São é o que pisa em alguém
pra ganhar mais um vintém
O que passa reto pela vida
tem a sanidade garantida
E quem se camufla pra suportar
que ao mundo não pode se entregar
É são, como aquele que derrama
as mágoas sobre todo amor e chama

Então pra salvar o mundo,
proponho uma inversão:
libertemos nossos loucos
e amordacemos todos os sãos
- até que aprendam alguma maluquice!

domingo, 4 de outubro de 2009

.pertencimento*

não gosto de posse
pois tudo pertence a ninguém
e não existe guia
pra quem não usa coleira

então como escapar das amarras
que tanto nos furtam o todo
se quero um amor inteiro
até com suas falhas

alguns dizem vá em frente
outros me avisam que não dá
dizem: 'amor real é coisa da mente'
será?

mentem querendo que eu acredite
na desilusão sem dor
no sorriso sem calor
e tem quem aguente?

o calor que nos esquenta
ninguém sente do mesmo jeito
e talvez o sol não seja de ninguém
mas o coração em chamas é meu

assim como eu não sou de você
nem você é meu
eu com você, você comigo

e por isso nos pertencemos tanto


*com http://silencio-do-dizer.blogspot.com/2009/10/pertencimento.html

Os tolos

chorei feito um idiota
acreditei como um imbecil
comemorei tolices infundadas
gritei de desilusão inútil
cantei babaquices bobas
senti cada dia tosco

então me perguntaram o porquê disso tudo
e respondi:

amor

foi aí que me dei conta de que tolos são os que não amam.

Não sou mais militante.

porque não creio na guerra
sou agente
porque creio na vida e nas pessoas

é só uma questão de linguagem
mas linguagem é só visão de mundo

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Meu médico acredita piamente na ciência

e antes de operar reza três avemarias
em seu consultório guarda santos e mapas astrais
quando tive gripe forte receitou-me uns cristais
coleciona patuás para ir a romarias
e receita distração quando estou cheia de ais

Se uma bolsa d’água pode ser cura pra enxaqueca
posso eleger profeta um poeta desgarrado
se ele diz que sendo ateu crer em deus é possível

Então tomo uns florais pra aumentar a resistência
contra gripes suínas e drogas institucionais

- Quem sabe um dia a luz do sol substitua os hospitais
E se entenda que, às vezes, a ciência também mente

Amém.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Poemário Relâmpago

.
Superlativos

1.
meu egoísmo
.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Todo poeta deveria...

.
saudar o sol e a lua
achar beleza no lixo
andar sempre com uma caneta (papel se arruma no bar)
puxar papo com desconhecidos
conversar com as estrelas
sentir o cheiro da chuva vindo
sair pra beber com os amigos (e ser carregado, eventualmente, já que os carrega tantas vezes também)
fazer promessas de amor
descumpri-las se a chama acabar
cantar sem saber a letra
dançar sozinho
perder-se numa estação de trem ou centro de cidade grande
escutar a música do vento
ter raiva de muitas coisas (e paixão por outras tantas)
perder a vergonha da cara com uma certa freqüência
presentear um poema
seguir as linhas das estradas
desenhar nuvens no céu
deixar-se fazer feliz por alguém
querer fazer alguém feliz
perceber a inutilidade de se contar o tempo
descontrolar-se e gritar sem sentido ao vento (pelo menos uma vez por ano)
olhar fotos antigas
espantar-se com mistérios numa gaveta velha
inimaginar o sentido da vida (apesar de sempre buscá-lo)
andar descalço
plantar
sentir cócegas da água
inventar desculpas
ler até bula de remédio, mas, principalmente, emoções das pessoas
maquinar planos
sofrer desenganos
nadar em lágrimas (de tristeza e alegria)
diferenciar os tons de verde da grama
visitar o Rio de Janeiro, ao menos uma vez (apesar de também amar outra cidade)
ter sonhos e medos
conquistar alguns de seus segredos
sair sem destino

...ser um pouco pretensioso (como eu)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

catalyst';.

why do I feel so lost when trying to lose my mind
if it’s gone so easily as soon as you’re around
don’t speak about shallow body issues, in fact
mean the cloudy concepts which my soul attacks

it’s clear as the sky announces upcoming rain
every time we gather, we’ll be lost again
so I fly slowly as hurricane runs deeper
and wonder why my mind is such a seeker

hey,
now you’ve showed up it’s easier to see
I was trying to dance as nice as can be
but never could get to reach so high
as when we forget the steps and fly

wind brought me these words day by day
and they just make sense along the way
telling we’re not each other’s happiness
we’re its catalysts even in unawareness

sexta-feira, 26 de junho de 2009

O nascimento de Maicou Jaquesson

Votando pra casa do mercado onde trabalhava como empacotador, Maicou ouviu ecoar pela ladeira a triste notícia: o inspirador de seu batizado havia morrido. Foi um baque. Sentou-se na calçada, adiando a volta pra casa pra não ver o desolamento da mãe. Madinusa – nome inspirado nos produtos Made in USA, com os quais sua mãe tanto sonhava – estava grávida quando o Rei do Pop veio gravar um clipe no Morro Santa Marta em 1996.

A garota de 16 anos tinha acabado de perder o namorado, pai de seu filho, numa batalha pelo tráfico de drogas na favela que virou cenário. Como se não bastasse, haviam cortado a água e a luz do barraco onde vivia com a mãe, também viúva, porque não tinham pagado a taxa ao vizinho que fizera o “gato” pra ligá-las. No entanto, todos os problemas do mundo sumiram, como fumaça de tiroteio, quando Michael Jackson subiu a ladeira e tocou a mão de Madinusa com sua mão “branquinha, cheia de veias azuis”, por exatos três segundos.

Ainda havia esperança. A garota sentira que o cheiro da fama é igual ao de gente. Se ela não tivera sorte nos testes para agências de modelos e comerciais de tevê – porque era muito difícil dominar seus cabelos armados para atender aos padrões globais (da Rede Globo), seu filho poderia ter outro destino. Batizá-lo com o nome do ídolo lhe traria sorte, atrairia o sucesso tão almejado, mas inalcançável para os espectadores passivos do “horário nobre”.

Treze anos depois, o jovem, trabalhador desde os sete anos de idade, negro, nariz largo, não tinha qualquer semelhança com o popstar branco, de nariz fino e cabelos lisos que vivia numa eterna infância. Exceto o ritmo pra dançar. Andava pelas vielas da favela como se deslizasse por um palco. Improvisava coreografias ao som do bater de panelas e martelos nos dias de obra e dançava qualquer estilo de música nas festas com os amigos. Mas do que gostava mesmo era o maracatu, o forró e o samba, que ensaiava num Centro de Cultura Original aberto no morro por um grupo de atores de Teatro do Oprimido.

Porém, aquele remelexo todo não estava certo. Já havia passado a moda do É o Tchan e dançar virara “coisa de bixa”. O novo ídolo de sua mãe era um jogador de futebol que acabava de se mudar pra Europa. Jogar futebol sim, estava na moda, era o Pop do momento, “e é isso o que você devia fazer, Maicouzinho! Ir atrás de um time, sabe, esses técnicos tão dando muita oportunidade pra rapazes como você”, dizia Madinusa. “Ou então, já que é pra dançar, podia fazer que nem aquele que te deu o nome! Passos certos, retinhos, nem parece de gente!”, replicava sua avó, “imagina se ele vem aqui nos visitar de novo? São esses remelexos de pobre que você vai mostrar pra ele?”, continuava.

Nem adiantava explicar pra elas e pros seus colegas - que já estavam todos entrando pro crime atrás de naique xoques e relógios de marca que viam na TV – que a dança era uma forma de expressão, de cultura, de diálogo, que não tem regras, que é arte e que é transformadora! Por pressão do grupo, decidiu parar de freqüentar os ensaios por um tempo e até tentou jogar futebol, sem sucesso, aquilo não lhe alegrava a alma.

Mas, num repente, o Rei do Pop morreu. Seria a morte da ditadura do Pop também? Maicou decidiu que sim. Não tinha mais de quem ter vergonha de mostrar seus rebolados tortos. Libertou-se do peso de seu nome e passou a guiar-se pela consistência do seu eu. Foi nesse dia em que se deu seu verdadeiro nascimento.

Maicou voltou aos ensaios no centro cultural. Depois de terminar os estudos, partiu em turnê pelo país. Aprimorou seu controle corporal e passou dar oficinas de auto-conhecimento por meio da dança. Deixou-se acreditar na força da arte passada a pessoas de comunidades afastadas dos holofotes. Deixou-se guiar pelo amor sem preconceitos e uniu-se a Maique Taisson, companheiro de trabalho.

Um belo dia, quando passava uma temporada na casa da mãe, no Rio, a vizinha veio lhe trazer a boa nova: “Maicou, tem um moço do Circo do Solei que quer te conhecer! Ele disse que você tem talento pra ir viajar o mundo com eles!”. Depois de uma conversa com o simpático empresário alemão, que lhe explicou sobre a rotina de ensaios e o “alto nível” do público que lhe esperava, o jovem - agora com 22 anos - negou a “oportunidade”. “O trabalho desse circo é admirável, mas não é pra mim. Passei muito tempo preso a padrões que não combinavam comigo e com as pessoas que vejo na rua, preso a uma identidade que não era minha. Agora que me libertei, nasci pra vida e pra felicidade, não abro mão disso”.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Eu sou minha revolução

E, nisto, não há nada de egoísta. Ocorre que nós, animais humanos, não somos formigas. Não temos funções pré-determinadas, nem devemos querer aceitar uma rainha que nos indique seu projeto único e absoluto de formigueiro. Devemos tomar cuidado com certos conceitos de igualdade que buscam a supressão da individualidade (falo da globalização neoliberal). Somos iguais sim, mas no sentido de valor, valor este, no sentido de valer - já que ninguém vale mais do que o outro e, portanto, não deve agir como se tivesse o direito de subjugá-lo. Iguais no sentido de capacidade de formulação de consciência e ação, mas intrinsecamente diferentes nas maneiras pelas quais cada um constrói esses dois pilares-projeções do eu.

Minha revolução sou eu, porque, uma vez que não existe um ou alguns animais humanos cujo código genético determina como responsáveis pela revolução de sua comunidade, e que cada comunidade é mais complexa do que a simples soma de seus indivíduos, cada animal humano tem a capacidade e a responsabilidade de se auto-revolucionar.

É claro que tal revolução não se trata de um ato solitário. As estratégias utilizadas para a massificação da cultura já demonstraram que a alienação para a aceitação desses produtos “culturais” se dá, principalmente, por meio do isolamento das pessoas em frente à televisão. Mesmo que dois indivíduos assistam à teletela (alusão ao livro 1984) juntos, não estão interagindo verdadeiramente, as falas da tela substituem o diálogo que deveria surgir entre eles. O diálogo é o que evidencia as diferenças entre as pessoas, que aprendem a conviver apesar delas. Convivência não significa a supressão dessas diferenças, é o que possibilita a diferenciação do outro, que dá força à individualidade – não ao individualismo.

Individualismo é aquilo que leva ao surgimento de “salvadores da pátria”, heróis super-poderosos que teriam o poder de incutir sua auto-revolução a todas as outras pessoas, bem como seu projeto de revolução para a sociedade em geral. O mecanismo seria muito simples: bastaria que uma cabeça brilhante tivesse uma idéia de solução - ou aderisse a uma, destacando-se por seu carisma - para todos os problemas da humanidade e a ditasse através de um alto-falante global. Os ouvintes se eximiriam do esforço de entender essa idéia e de levá-la adiante, porque esse ser extraordinário faria a mágica da revolução acontecer por sua conta e risco.

Por mais inúmeros que sejam os heróis que ficaram para a história – cujos superpoderes foram fabricados historicamente -, nenhum deles foi o único responsável por qualquer revolução. Nem Lênin, nem Che Guevara, nem Lula, nem quem-quer-que-seja foi, é ou será capaz de instaurar uma revolução real no cotidiano de todos. O fato de terem sido pessoas corajosas, carismáticas, ótimos exemplos (ou não) é importante e merece estudo, memória, mas não glorificação. Podem ter sido responsáveis pela disseminação da semente de um projeto de sociedade diferente, mas foram, são e serão incapazes de fazê-la florescer sozinhos. Acreditar na salvação por um messias é uma postura conformista que ssó gera imobilidade.

Revoluções reais não acontecem pela vontade de um líder ou pela exaltação de uma idéia pronta. É preciso que cada um se revolucione e, então, descubra, no debate com os outros, alternativas a serem construídas em conjunto para revolucionar a comunidade. Já que o valor e a vontade de um conjunto de pessoas não são iguais à simples soma das vontades de todos os indivíduos que o compõem, é impossível que a revolução desse grupo aconteça a partir de um projeto individual. Mas é preciso a participação de todos, por isso, é preciso se auto-revolucionar. Nesse sentido, uma revolução pessoal é o que de mais coletivo pode haver.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

pr’onde quer que seja

*
de repente, tenho minhas noites de volta. tempos vadios de furacões particulares. é como se me tornasse mais “eu” novamente. a madrugada é muito do que sou: filosofias de luar, crises existencializadas, solidão-companhia, mistério, meia-luz, focos de brilho, chocolate e vinho, passeios pelos pensamentos e letras, tempo sem hora, sonhos sem horizonte, ventos de reviravolta.

tão minha, que me parece estranha. será que algo mudou? a cor do céu, a energia das estrelas? algo me deixa tonta, confusa de tanta informação. então, já resolvi, quem mudou fui eu. será que a madrugada ainda é minha como antigamente? se é, ainda é da mesma forma?

chega de “mesma(o)”, quero furacão. desses ventos que costumam me assolar com certa freqüência. diria até que saio em busca deles, mas geralmente são os próprios que me arrebatam no caminho.

andei percebendo que mudo tanto, que não tenho medo de reviravoltas bruscas – mas preciso saber pra onde estou indo. na verdade, esse onde pode até mudar, pode ser onde-quer-que-seja, só preciso saber que me movo. para me posicionar. como se isso me desse base na desordem.

no caos que somos, que cada um é, preciso saber apenas se estou sendo o que sou, ou o que era, ou o que acho que eu mesma quereria ser – antes de alguns eus passarem a não ser mais eus e assim sucessivamente. tudo em busca duma sinceridade tão pura que nem sei se existe. mas assim como o ar que não vejo, não deixo de respirar.


*


Vvvvvvvum!

busco um furacão que me enrosque
pé na mão, sonho no dia, tato nos ouvidos

um tornado que nos viaje
achemos tesouros, povos, batuques

ciclone que nos renove
tal cachoeira, orvalho da manhã

fujo da calmaria
eterno domingo de sol à pino
derretendo

precisa
mos

m
___o
_v
__-i
-m
__e
n
_t
o

domingo, 7 de junho de 2009

Discurso para esvaziar a discussão

O editorial da Folha de São Paulo de 6/6/09 (“Moinhos de vento na USP”) evidencia a inversão de foco utilizada pela imprensa grande para desviar a atenção do que realmente deve ser discutido. A greve, a “bagunça” causada pelos manifestantes, o trânsito que o protesto gera na avenida são colocados como problema central. Não há disposição para discutir as motivações do movimento. É como tentar curar sarampo cobrindo as manchas na pele com maquiagem.

Concorde-se ou não com os métodos escolhidos para mobilização - greve, carro de som ou escudos de papelão -, seu objetivo é trazer a discussão à tona. A reação da imprensa deveria ser problematizar as questões que envolvem as reivindicações dos “grevistas”, e não noticiar apenas há quantos dias estão paralisados ou o quanto intensificaram o trânsito. O que se vê, ao contrário, é a tentativa de apagar explosões que são sintomas imediatos da indignação com a precarização do ensino – até quando conseguiremos caminhar sobre esse campo minado? Não adianta tentar calar a insatisfação com uma mordaça, a solução só virá a partir de um grande debate que envolva toda a sociedade.

Da mesma maneira, colocar a polícia militar dentro do campus da universidade para amedrontar estudantes, funcionários e professores não ameniza, senão, impulsiona os protestos. É mais uma expressão da indisposição ao diálogo. Alguém se sente à vontade para negociar frente a cassetetes e fuzis?

Enquanto isso, dentro de sua fortaleza, a reitora parece sentir saudades da agitação em torno da ocupação da reitoria de 2007. Na época, o arrombamento das portas do prédio foi deflagrado pelo não comparecimento de Suely Vilella a uma das inúmeras reuniões solicitadas pelos estudantes, para debater os decretos impostos pelo governo estadual. Hoje, as reivindicações são outras, mas a postura da reitoria permanece a mesma: em todas as reuniões de negociação com os manifestantes, negou-se a debater as principais reivindicações – a criação da Univesp*, o financiamento da educação pública e a criminalização dos movimentos sociais.

Contudo a reitoria e a imprensa não são os únicos culpados pela falta de debate. Boa parte da sociedade também não se importa com as questões. Vivemos um tempo de desencanto e desinteresse pela política que é a verdadeira crise do mundo contemporâneo, muito mais devastadora que a econômica. Sufocadas pela rapidez do cotidiano pós-moderno, em que qualquer pedrinha pode atrasar o caminho e causar um prejuízo enorme, poucos têm paciência de parar para refletir. Assim, vai-se dando um jeitinho e tapando o sol com a peneira até (além d)o limite. Nessas horas, queria acreditar na teoria marxista do “descenso”, para a qual, após um período de mobilização intensa, segue-se um de desmobilização que, então, desencadeia a mobilização novamente.


*A comunidade uspiana não é contra o ensino à distância em si. Não aceitamos o projeto da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). O documento foi aprovado em uma votação de validade duvidosa no Conselho Universitário no final do ano passado, sem passar por qualquer discussão prévia com a comunidade universitária e em geral. Não houve empenho em explicar e debater as sete páginas que dão conta (?) da criação dos novos cursos de licenciatura à distância - talvez porque não houvesse muito o que debater, uma vez que sete páginas não são suficientes nem para um trabalho final de uma disciplina de graduação.

O modelo aprovado não diz como serão exatamente esses cursos. Seus apoiadores parecem crer que eles darão certo apenas pelo fato serem realizados pela “Excelentíssima USP”. Até hoje, não conheci essa misteriosa entidade que dá conta de tanto conhecimento. A USP é feita por pessoas, que precisam se dedicar para estudar e debater, durante um bom período de tempo, antes de criar novas graduações e métodos de ensino.

Além disso, os docentes da universidade são contratados, por determinadas cargas horárias, para cumprir atividades de ensino, pesquisa e extensão. Como não foram contratados novos profissionais para o oferecimento das graduações à distância, imagina-se que os professores atuais – que já são poucos para a quantidade de alunos e disciplinas hoje existentes – terão que abdicar de algumas de suas atividades para fazê-lo.

A Univesp não nasceu em prol do aumento do acesso à educação de qualidade. Foi empurrada “goela abaixo” à USP pelo governo do estado, na tentativa de amenizar um problema histórico de má formação de professores. Mas como será possível sanar tal problema com um método de ensino tão incerto? (De novo, a peneira para tapar o sol?). Os grevistas e manifestantes também defendem o aumento de vagas nas universidades públicas, mas um aumento real, em que todos tenham direito à mesma qualidade de ensino.

(texto enviado à Folha de São Paulo)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sanidades,

Declaração do Sr. W:

Um dia aprendi a ler e a escrever, à altura do pré-primário. Depois saí da escola sem sair e nunca mais usei tais competências. Até que um dia me presentearam com um livro. Não havia sentido algum em dar um livro a alguém como eu, e confesso que foi o tédio numa tarde de sol que me fez abri-lo. Foi um ingresso sem volta.

Poderia descrever-lhes, especificamente, o nome do autor, da obra, da editora, coleção, detalhes da história, relato, teor das reflexões, peso do objeto, textura da capa, cheiro do papel. Mas tal atenção suscitaria associações de que qualquer um desses fatores teria sido o responsável por minha perdição no mundo das letras pensadas. Não o foi. O ingresso foi sem volta, não num livro específico, mas nessa mania, vício, síndrome que me é escrever.

Acontece que depois de devorar aquela quantidade limitada de páginas antes do entardecer, nunca mais consegui ler um livro inteiro. Nem romance, nem relato, jornal, revista, panfleto, a nada disso alcanço o final – salvo em condições extremamente adversas.

Tantas vezes o interesse me transborda a mente por tal assunto ou história, mas é só começar a ler sua primeira frase que me possui um ímpeto de escrever maior que as necessidades de alimentação e sono para um ser humano; não posso reler, sequer, o que escrevi. Minhas mãos revezam-se, a direita e a esquerda, preenchendo cadernos, folhas, telas de computador, guardanapos, paredes, lençóis, vidros, ladrilhos, asfalto, pele. Tudo para que as deambulações mais, ou menos, absurdas não sublimem aos cuidados da mente superestimulada dos dias de hoje.

Foi assim que lancei uma infinidade de orações, ordenadas ou desordenadas, nos mais diversos formatos – folhetos, cartazes, livros, revistas, poemas, reflexões, palavras simplesmente juntas -, obtendo um pouco de lucro, insuficiente tanto para sanar minhas necessidades humanas como para cessar essas ânsias de escritura. Fiz dessa minha profissão, não apenas por prazer, mas por falta de escolha, já que não sou capaz de terminar qualquer atividade sem interrompê-la por instantes imprevisíveis à caneta ou ao teclado.

Por não ler as coisas até o final nem revisar meus escritos, acabei por confundir informações importantes de assuntos ou pessoas sobre os quais, inconscientemente, resolvi referir-me posteriormente, inferindo em erros cujas conseqüências ficaram a cargo da famosa Justiça – sobre a qual li em alguns fragmentos. Foi assim que me vi obrigado, aos quarenta e dois anos, a ler o segundo texto completo da minha vida.

A determinação foi do advogado, que acontece de ser meu primo e não abriu mão de me fazer um cidadão consciente, ao ler o processo que me foi imputado. Não sem cansaço.

Para concluir a leitura, era preciso colocar-me numa situação em que seria completamente impossibilitado de escrever. Foi então que me lembrei de um episódio, quando tinha cerca de dezenove anos, em que quebrei os dois braços ao jogar uma pelada com os amigos – no intervalo de uma escreveção e outra. No hospital, imobilizado, fui presenteado com uma carta de minha namorada na época, à qual li in-tei-ri-nha, não sem tentar livrar-me do gesso. Depois pedi para a enfermeira chamá-la antes que saísse do hospital, “que era caso de vida ou morte”, e consegui responder-lhe oralmente! Convencidos de que aquela proeza só podia ser obra de um amor inabalável, decidimos nos casar anos depois. Depois, inclusive, descobrimos que amor e inabalável não ficam lá tão bem na mesma frase, mas isso já é outra história.

Bem, pois então pensamos em engessar meus dois braços, e colocar-me numa sala vazia, sem janelas. E o fizemos. Acontece que havia um telefone com viva-voz numa mesinha próxima à cadeira onde me encontrava. Lá pelo terceiro parágrafo do processo, consegui apertar o botão do viva-voz e o que ligava para a recepção com o pé – já que estava no prédio do escritório onde meu primo trabalha – e pedi para a secretária que tomasse nota do que eu fosse dizendo. Resultado: não consegui terminar de ler o processo e quase fui processado novamente, pela supervisora do escritório, que considerou anti-ética a atitude de citar um caso judicial em plena portaria de um edifício movimentado, sede de um renomado escritório de advocacia que primava pelo sigilo absoluto de seus clientes, “o que as pessoas que passavam por ali iriam pensar?, que chacoteamos suas ações pelo auto-falante?”.

Aí resolvemos ser mais drásticos: cheguei a luxar minhas duas mãos – com a ajuda de minhas filhas a jogar vôlei com uma bola dura demais -, colocar uma camisa de força e algemas, sentado no chão no meio de um galpão vazio apenas com o processo a minha frente, sem água ou comida. Depois de uma tarde de delírios, consegui finalizar a leitura – do meu terceiro, não segundo texto. Em seguida, meu primo me soltou para que assinasse meu recurso de defesa. Ele se encarregou do processo e fui inocentado devido à minha condição de “sanidade precária”, sob a prerrogativa de realizar tratamento psiquiátrico por, pelo menos, três meses.

É por isso que aqui estou. Escrevo no divã, porque hoje o psiquiatra resolveu que era hora de analisarmos meus textos. Instantaneamente, instalou-se em mim aquele ímpeto avassalador de escrever. O profissional, cheio de sua teoria de “observação sem interferência”, encorajou-me a seguir em frente com o que me sentisse à vontade em fazer. Depois de três horas, ele se cansou e foi atender outro cliente na sala ao lado.

Há alguns minutos, outro homem vestido de branco bateu aqui na porta e perguntou meu nome. Depois da resposta, saiu. Achei que havia se enganado, mas agora ele se prepara para entrar novamente. Desconfio que farão algo para separa-me deste papel. Sim! Com certeza o farão! Oh não! Ele segura uma camisa de força! Mas quem é para dizer o que é sanidade ou loucura? Por que razão deveríamos aceitar que amarrar um semelhante é uma atitude mais aceitável do que sucumbir aos disparates inerentes à vida em sociedade? É certo, vão me tirar a caneta! Acho que ainda consigo escrever uma última declaração. Se não terminar a próxima frase, é porq

terça-feira, 12 de maio de 2009

postagem 101

*

ME CONTA
____ MINA ?




me conta, mina?









contamin
_______AR

*

segunda-feira, 11 de maio de 2009

aFlorescente

cuidado, cuidado!
se não gosta de canto
se prefere comando
olhe por todo lado!

nós somos os infiltrados.

a cor que destoa
botão que desabotoa
o peso que voa
a explosão do latente

nós somos os infectados.

duma ação contente
riso despreocupado
duma força crescente

aquilo que incomoda.

tal felicidade sem preço
amor sem motivo
liberdade de pudor

nós somos contagiosos.

duma inquieta busca
descrente de brutalidade
e totalmente sincera

capaz de viver o que é belo.

tal pingo de chuva apressado
ou raio de sol desencontrado

nós somos o sorriso sem dentes.

cremos numa alegria inerente.

e nem adianta se esconder:

nós estamos por toda parte.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

descascaradme como mandarina

si cada ansia a habitarme fuera un gajo
sentía como si les hiciera herramientas
anulándose en interminables quehaceres
que ya casi ni me sabían, se me habían olvidado

de mi cuerpo hice recuerdo, yo misma
mi piel nada sentía, fuerte frente al esfuerzo
o por falta de distracciones dignas?

hasta que un día se me enrollaran los gajos
fuera viento u tempestad? nada, huracán!
intenso como mis batallas, lleve como un pájaro

suavemente, atingió la memoria de mi pulpa
y arrebató mis ansias de un solo golpe!

mi cáscara, ahora, puede volar
y luego rehacerse completa

claro que es disparate hablar de amor y trabajo en el mismo poema
aún más juntarlos a otros ideales dispersos en los días
pero hay algo que los une, unos a otros y a mi:
la intensidad que nos deshace y luego nos torna plenos

así, entiendame cuando pido: descaradme como mandarina!
y tu lo haces antes de oírlo, pues sabes que al desmontarse
uno encuentra a si mismo y a todas sus pasiones

quarta-feira, 15 de abril de 2009

para ser Amigo, preencha a ficha.

Hoje, voltando pra casa, tive que frear antes da hora, porque um carro estacionava à frente duma casa pouco antes da minha. Chovia bastante, mas pude ver que era o carro do namorado da minha amiga que mora ali, e que ela também estava dentro. Por um segundo, hesitei cogitando se parava e dava um oi ou passava reto, pra deixá-la à sós com o bofe, e ligava depois que chegasse em casa – ou quem sabe mandasse um sms, ou um scrap no orkut depois, ou deixasse pra comentar outro dia quando nos vermos pessoalmente. Logo larguei mão e abri a janela do carro ao lado deles, mas só o fato de ter parado pra pensar me soou estranho.

Ela é uma das minhas melhores amigas, que conheço há anos, desde moleca – e como éramos molecas aos onze anos! Mas ultimamente não temos nos falado tanto. Não ocorreu nada de errado, nada de brigas, distanciamentos, apenas algo da vida que ocupa cada um em seu rumo e, às vezes, desvia uns dos outros. Algo que pode e, provavelmente, será revertido em algum momento próximo, porque é o que acontece na maioria das vezes e dos casos de amizades próximas. Esses vai-vens da vida.

Bem, à janela aberta, ela disse antes que a chuva respingasse mais dentro dos carros:
- Oi amiga! Como cê tá? Acabou de chegar da facul?
- Oií! Tudo bem sim, e aí? Pois é, acabei, e você?
- Também, agorinha!
- Pois é, e acredita que nem conseguimos fechar o jornal que era pra segunda ainda?
- Sério? Que coisa! Mas você ta fazendo só isso agora, né? Já saiu do trabalho?
- Que nada, to trabalhando, mas esta sexta é o último dia!
- Ah, que bom, aí vai ficar mais tranqüila, né?
- É, espero.. hehe.. E você?
- Ih, amanhã tenho prova, to ferrada!
- Ah, e o feriado?
- Vou viajar pros jogos da faculdade!
- Ah, jura? Olha, Fulano, você conseguiu um feito, ela nunca vai pra esse tipo de viagem! – ao que o rapaz sisudo respondeu com um sorrisinho amarelo, apesar de parecer que estava indo mais com minha cara do que no começo da conversa. Podia xingá-lo de antipático, mas acho que na hora era sono mesmo.
- Pois é, menina, decidi! Hehe E você?
- Vou pra praia..
- Com o “namo”?
- É, e mais uns amigos..
- Que delícia.. Bom, mas tenho que ir terminar o trabalho..
- Eu também, preciso dormir! Tchau, querida, vamos nos falando!
- Vamos sim, boa noite!
Fecham-se os vidros e o papo fica pra trás. Durante uns dois minutos, falamos sobre nossas vidas, tentando resumir “como elas vão”.

Falamos sobre isso mesmo? Vidas são muito complexas, a conversa iria continuar depois? Quando? Neste caso, é bem provável que realmente continue, mas me intrigou pensar que foi uma conversa como outra de conhecidos quaisquer. Quanta gente não nos conta seu “status” imediato casualmente, quase como se preenche um formulário? Quantas pessoas não “conhecemos” a partir de uma “síntese” de sua vida?

"Nome: Fulano de Tal. Profissão: Jardineiro. Estado Civil: Solteiro. Hobby: Jogar Pelada no Domingo. Feriados: Sem Planos de Viagens Próximas. Ocupado no Momento: Sim, com os Estudos. (silêncio) Tudo em letra legível? Já pode entregar e ir embora?"

Qual o significado por trás de cada informação dessas? Quanto elas nos dizem sobre alguém? Afinal, quantas das fichas guardadas em nossas gavetas realmente conhecemos?

terça-feira, 14 de abril de 2009

Conselho

Um dia me perguntaram por que eu não comprava um caderno de escrever – “pra dar vazão à criatividade”. Que ajudava a visualizar rimas, fazer poema brotar. Respondi que poesia não acontece em caderno nem em rima. Caderno até serve de berço, mas não de parteiro, porque poesia só nasce de parto normal.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

mensagem na garrafa

Agora que percebi que sou navegante, descobri a razão dessa mania de escrever mensagens pra que sejam encontradas, longe, por algum caiçara.
Talvez todo jornalista – de alma – tenha um pouco disso, uma certa distância que o faz analisar as coisas, ao mesmo tempo em que permite a ele se envolver com o mundo bem de perto.
Dizer que jornalista é um ser apaixonado é pleonasmo. Ao menos, na minha visão do que é jornalismo, na qual o trabalho está intimamente atrelado à “missão” de luta por objetivos. É certo que nem sempre ocorre assim – tão aí as capas dos jornais, revistas, sites pra comprovar -, mas isso não tira a razão de acreditar e buscar viver um ideal.
Quando esse tal de “ideal” – de luta, não de situação - parece virar cotidiano – cotidiano, aliás, nada comum -, a paixão pela profissão não tem mais onde se esconder.
Fazer jornalismo é estar diante do mundo, como num trampolim sobre uma piscina, e mergulhar aos poucos, suave ou bruscamente, de cinco ou cinqüenta metros de altura (na maior parte das vezes, de cem metros). É se espantar com cada sutileza ou “óbvio surpreendente”, na superfície ou lá no fundo, buscando aprendizado. É, ao escrever uma simples nota de 1/8 de página ou uma matéria de 10 folhas, ter a sensação de que se está passando muito menos do que se aprendeu ao apurá-la. E, ainda assim, crer que aquele pouco que se conseguiu passar adiante possa se transformar, ou ser transformado, em realizações, em mudanças.
(e toda essa paixão que já não me deixa viver em paz é a paz que alimenta minha ânsia de viver)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Lara Livre

Por onde passava, chamava atenção. Era aquele andar peculiar. De tão leves, seus passos desexistiam, segundos após se formarem no ar eminente ao chão. Faziam a terra desistir de ser dura e estremecer, desorganizando tudo à volta.
Ninguém conseguia prender Lara ao solo nem determinar seu caminho. Sempre à deriva. Seu único senhor e guia era o vento. Bem tentarem driblá-lo e conduzi-la a qualquer canto – em vão.
Até que um dia passou tal ventania que levou Lara da vista de toda gente que, de tanto descrente, foi procurá-la. Acharam-na à beira d’um penhasco, prestes a cair, e estaticamente segura por um fio de corrente de ar contra o desfiladeiro abaixo.
“Vem Lara, vem, por que não se salva?”, clamavam as gentes. Sua fala tão livre quase não podia se materializar. Até que se esboçou assim: “meu pé de vento”. Então todo mundo entendeu: Lara Livre era presa à sua própria leveza e nunca a desobedeceria.
A gente voltou a suas liberdades e prisões pensando no descabimento de ser livre por obrigação.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Close

reflexo de nariz. textura de bochechas. fios de luz, de cabelos. ímã entre dois corpos. ar quente. uma corrente fria de repente, cheiro de rua, de mundo. mundo? onde? distante, abstrato, inexistente. mundoaqui, mundonosso. nós, isto, isso. sempre. não, tempo só há fora. mundo é só o que se olha distanciado, fora do close. aqui é aqui. agora é sempre e é nunca, é sonho, é nada, a única realidade possível em meio a sonhos impossivelmente reais. esse excesso de realidade é o que cega as pessoas. aqui é diferente. você é só você e eu, simplesmente eu – sem precisar chamar nem Você nem Eu. posse é de fora, aqui há conexão, é conexão. eterna, num instante de leveza intensa. bem de perto, mais que dentro, quase fora.

tranS-

BORDA

Às vezes me bate um desespero louco – ou uma loucura de entrar em desespero. Sinto-me isolada num nada e quero abraçar a tudo e a todos. Logo me vejo cheia de tudo – não sei se minha vida fica muito cheia de coisas ou se todas as coisas me são muito cheias de vida. Só sei que transborda. O mundo me enche de vontades que transporto pra mil coisas que me enchem mais ainda e aí eu encho tudo até me encher de mim. Então, tento me anular enchendo os olhos de estrelas. Mas isso só me enche de calma e agitação e tenho que encher umas folhas de papel. Os pensamentos transbordam pra frente dos olhos que enchem de letras o lápis, que transborda mais que os pensamentos.

sexta-feira, 6 de março de 2009

de assalto!

se me puxassem o tapete
seria menos inesperado
porém, mais brusco
não foi (nem brusco nem com tapete)

foi como perder os freios
(que ainda andam perdidos)
e achar-se quilômetros depois
à deriva (tontos de céu e de chão)

e agora, o que fazer?
se passa vento, tempestade?
e se dá medo? (de nada e de tudo)

e se fugir é pior que o medo?
e se os freios não funcionam?
e se as respostas são movimento?

- eis, aí, um porto escondido,
que nos salva do maior receio:
a calmaria (num tudounada)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

novas janelas

Sou uma pessoa pensativa, por isso, passei boa parte dos meus tempos de ócio apoiada na janela do quarto olhando, viajando, pensando com a vista. Como certas características das pessoas mudam mais dificilmente do que a tecnologia, não perdi meu hábito de pensar-sem-freio, mas passei a olhar pra outra janela. Existem janelas dos mais variados tipos, e elas sempre parecem convidar à reflexão de alguma forma, por abrir um campo de visão pra além do ambiente onde se está. Tem gente que pensa com a porta da geladeira aberta, com o chuveiro ligado no banho – o que, aliás, não é nada saudável pro meio ambiente – e até olhando pra comida que assa no forno (e não falo só de cães). Mas hoje em dia, muita gente não tem tempo, sequer, de parar em casa pra abrir a geladeira, quanto mais pra ficar apoiada na janela. Tem muita coisa pra ser feita em muito pouco tempo, que não pára – a não ser que caia a conexão. A velocidade da vida medida pela da internet. Quase arrisco dizer que pessoas com acesso a conexões de alta velocidade têm mais chance de sucesso. Exagero, mas nada demais se comparado ao desespero causado por alguns minutos de “queda” da rede em pleno dia de trabalho. Você já reparou como desviei do assunto do começo deste texto? É exatamente isso o que ocorre, o tempo todo, quando se usa a internet, a rede. E isso tem tudo a ver com as janelas. Um link leva a outro e, quando se percebe, há vinte janelas abertas ao mesmo tempo na tela do computador. De certa forma, esse universo virtual caótico assemelha-se bastante a nossa própria mente, creio que é por isso que acabamos pegando gosto pela coisa relativamente rápido: num dia você não sabe o que é um mouse e, no seguinte, não consegue pensar em seus afazeres sem abrir o e-mail. (E como a rede não é linear, depois de uma volta, acabei chegando ao ponto que queria tratar desde o começo do texto:) Meu e-mail é minha nova janela de pensação. Não aposentei a janela do quarto, porque ela é única, é algo diferente, mas, você que trabalha na internet, pare pra pensar quanto tempo olhou pra janela do seu quarto e pra de um computador hoje? Quando percebi que tenho olhado muito mais pra segunda, fiquei preocupada, “estarei eu mudando minha forma de pensar por causa da tecnologia?”. Mas então reparei: toda vez que abro meu e-mail pensando numa coisa, vejo os assuntos recebidos e acabo me distraindo com outras coisas, até que, quando dou por mim, nem lembro mais no que estava pensando primeiro. Exatamente como acontece quando me apóio no beiral da janela. Nesse meu cotidiano louco e sem rotina, às vezes, chamadas de e-mails funcionam como tipos peculiares passando na rua e desviando o vôo do pensamento - que é como um balão cheio de ar que voa, vai voltando ao chão, quando é rebatido por alguém ou alguma corrente de ar inesperada. E eu, que nem sou “aquela” entusiasta da tecnologia, acabo falando dela sem querer.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

defesa das coisas singelas'

hoje tomei um chá comigo pra ver se me acalmava
a ansiedade castiga o corpo, mas enriquece a alma

escolhi um chá da Índia porque me cheirou a sossego
mas a alma é vazia quando toda desprovida de medo

passei geléia de rosas na esperança de virar uma flor
sem fugir dos obstáculos, mas pra desafiá-los em cor

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

livros, bebidas & flores

minha casa seria feita só disso

>>da mala

.areia

o deserto é um oásis de paz
dunas acima do céu
onde se encontram os sonhos
em pedras de tempo
se passa, se pisa, não pesa
o exagero evapora
o silêncio conversa
entende-se

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

flagras.

- Mas pra quê tanta boca-aberta? É lindo, eu sei, mas já passou, o sol, o pôr do sol... Bruna?! (...) É realmente lindo, mas é um pôr do sol, só um pôr do sol, tem todo dia, você parece que fica aí hipnotizada!
- (Volta os olhos para o rapaz calmamente) Sim, é só um pôr do sol efêmero – e, de certa forma, eterno, porque acontece todo dia, as cores mudam, mas toda tarde o sol se põe. É que eu tenho essa mania de me espantar com a vida. (O rapaz a olha intrigado, da mesma maneira com que ela observa o céu). Pode ser qualquer coisa de repente e pode ser até algo muito esperado que, mesmo assim, me espanta. Como o sol se pondo, ou quando você segura minha mão e me sobe um arrepio, fico toda boba. Quase um susto!

*

e se ele já tiver me levado como os outros? e eu tiver me perdido mais um pouco. e tivermos dançado de improviso, e caído logo no riso. e se nem-sei-onde for aqui? e não souber como sair, como ficar, pra onde ir. e que já não falo, comigo, dele, mas com ele. e se as rimas já entortaram e os silêncios se descalaram. e aqueles doidos desendoidaram e ficou todo mundo boquiaberto. e no céu desencoberto, uma lua novata. e descobrir que aquilo tudo não serve pra nada. enquanto somes com as gravatas e eu não paro de descobertas.