terça-feira, 17 de novembro de 2009

O maleiro de Pinheiros

Bigode de mariachi. Cabeça raspada ao vento. Blusa rosa-menina. Pele de sol tomado. Mala de viagem do avô. Mochila moderna para mochileiros. All star no estilo da metrópole. A cara de São Paulo. Mas olhar de forasteiro. Domava a faixa de pedestres desafiando os carros no farol verde.

Até que chegou o carro de Clara, com ela dentro. Olhou pra motorista e precipitou-se para a calçada. Ela passou a seu lado, mas o farol continuava verde.

A moça ficou o dia todo pensando no paradeiro daquele personagem peculiar: d'onde viria? Por onde andaria? Teria domado todas as feras citadinas em sua trilha até a gruta que o refugiaria?

Ou seria um viajante romântico? Compraria um mapa e uma flor no farol - para oferecer a uma moça e pedir-lhe indicação de caminhos. E se fosse um ator, intérprete de Pancho Villa, que cheva à cidade para uma temporada de apresentações? E se os espetáculos fossem na rua e ele tirasse o chapéu para pedir dinheiro? E se fosse um cigano andarilho, coletando moedas, amores e misticismos pelas calçadas?

As suposições possíveis quase não a deixaram dormir.

*

Uma semana depois, Clara precisou voltar ao bairro onde encontrara o suposto forasteiro. A mala que ele carregava lhe deu uma ideia de presente de aniversário para seu avô, que viajaria à Itália (sua terra natal) em breve. Já nem pensava mais no sujeito das suposições sonâmbulas. Sua tia lhe dera a indicação da loja de malas, chapéus e outros acessórios antigos em Pinheiros.

Tocou a campainha e subiu os pequenos degraus até a loja alojada numa casa antiga. Um senhor alto de cabelos brancos ajudou-a a escolher a valise perfeita. Mas estava riscada.

- Adamastor! - gritou o homem.

Prontamente, apareceu um rapaz baixo, magro, pele de sol tomado, bigode de... mariachi! O "forasteiro"!

- Arrume este risco para a moça, por favor.

Ao que ele balançou a cabeça simpaticamente, sem proferir palavra, o que aguçou ainda mais a curiosidade de Clara sobre o tipo.

- Não quer esperar lá fora no nosso jardim, senhorita? Temos lindas roseiras! Ele lhe levará a mala em seguida. - Convidou o dono da loja.

Aceitou o convite balançando a cabeça. Aquele "senhorita" salpicava seus tímpanos como um gotejo de passado que escapulia às barreiras dos tempos. Já as rosas pareciam mais reais, havia uma branca tão aberta quanto o sol de verão...

- Mas vermelho é a sua cor - disse Adamastor, às suas costas, com uma rosa vermelha e a mala nas mãos.

- Que susto! - sobressaltou-se a moça - Mas como você sabe que prefiro vermelho?

- Não sabia, agora sei - retrucou, abrindo um sorriso e entregando-lhe a mala e a flor.

Clara segurou-os, mas não se afastou. Rodeando-o com a cabeça, começou o interrogatório:

- Você se lembra de mim?

- Creio que não. Deveria?

- Provavelmente não... De onde você vem? Digo, onde nasceu, onde mora?

- Aqui mesmo. Nasci numa casa na rua debaixo, mas trabalho com meu tio-avô desde menino nesta loja - essas coisas antigas são minha paixão. Já tinha vindo aqui antes?

- Não, trombei com você outro dia num farol, aqui perto. Achei que era um viajante, porque levava uma mala como esta.

- Ah! Bem, de certa forma, pode-se dizer que sou mesmo um viajante. Viajo por essas ruas todo dia. Mas aquele dia, devia estar levando uma mala pra passear.

- Uma mala?

- Sim, é preciso fazer isso de vez em quando, senão elas esquecem como é que se viaja e quando os clientes as levam, reclamam que se perdem ou não funcionam direito. Essa aí que você está levando, por exemplo, é uma das mais passeadeiras, adora descidas e pores-do-sol!

Clara respondeu com um riso intrigado.

- E você, pra onde vai? - perguntou Adamastor.

- Achei que ia perguntar de onde venho...

- Isso não me interessa agora. Diga, pra onde vai?

- Não sei, acho que voltar pra casa, pra embrulhar o presente.

- Já que você acha, eu acho que não. Vamos passear com a Marlinda, sua mala. Topa?

A moça hesitou um pouco, e disse:

- Vamos, já está mesmo na hora do pôr-do-sol.

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