terça-feira, 11 de novembro de 2008

Jornalista sempre em crise

Outro dia, eu, meus colegas de universidade, a professora Maria Elisabete Antonioli e os jornalistas Maurício Tuffani e Pedro Pomar levantávamos polêmicas sobre a exigência ou não do diploma de jornalista para o exercício da profissão no Brasil. Havia defensores das opiniões mais radicalmente opostas e o debate esquentava, excedendo o horário previsto. Quando chegamos ao auge da discussão, no entanto, o assunto não era mais a obrigatoriedade do diploma, mas algo a que chamávamos “habilidades específicas” que um jornalista deve ter.

Percebi, então, que uma dessas “qualidades” só pode ser um certo estado de “crise existencial” permanente. Creio que em nenhuma outra profissão se debata tanto sua razão de ser como no jornalismo. O tema é abordado não apenas em debates como aquele ou nas redações, mas nos próprios veículos produto do trabalho desses profissionais – quem nunca leu um artigo ou editorial questionando a função do jornalismo? No entanto, diferentemente de outras “crises”, a dos jornalistas não atrapalha sua atuação, senão a aprimora.

Como disse Carlos Alberto Di Franco em seu artigo “O fascínio do jornalismo” (publicado na Folha de São Paulo de 3/11/08), “jornalismo não é ciência exata e jornalistas não são autômatos”. Portanto, não é possível listar regras universais para essa atividade. Sendo assim, sua fiscalização deve ser contínua e adaptada a cada caso. Além disso, por se tratar de uma atividade que interfere diretamente na realidade social, esse debate em torno de sua ética não deve se restringir aos profissionais do ramo, mas a toda comunidade.

Não raro, evocam-se aquelas características verdadeiramente heróicas que um jornalista “romântico” teria: imparcialidade, senso investigativo, sem receio de trazer a ‘verdade’ à tona doa a quem doer; tudo isso sob condições de trabalho difíceis e, hoje em dia, salários pífios. Ou seja, o sujeito seria, realmente, excepcional. No entanto, numa época em que jornalismo é, muitas vezes, confundido com a reprodução de declarações prontas, pré-concebidas por um dos lados da história, essa justificativa dos empecilhos impostos ao “profissional da notícia” me parece hipocrisia.

É certo que existem inúmeros obstáculos ao exercício da profissão, dos quais se destacam a imposição da linha editorial dos patrões e de um imediatismo midiático que considera as notícias por sua forma, independente do conteúdo. E, mesmo assim, tem um monte de gente que insiste em seguir essa carreira. Seus desafios são muitos, contudo, é preciso ter cuidado para não os confundir. De nada adianta um comunicador social que evoca as dificuldades de sua atividade, mas conforma-se ou, pior, adere a elas, toma seu partido.

Jornalismo é uma atividade racional que busca objetividade e clareza, no entanto, não pode fugir a sua complexidade, pois deve ser sentido. Nunca será possível delimitá-lo exatamente, mas isso não impede sua realização. É como um bolo feito com uma receita sem quantidades específicas dos ingredientes, apenas sugestões, mas que cresce. Por isso, bons jornalistas estão sempre em “crise”, analisando seu trabalho de acordo com cada contexto. O dia em que artigos de reflexão a respeito desses “dilemas” deixarem de ser publicados, haverá algo de muito errado.

O que me preocupa é a quantidade de questionamentos hipócritas, “só por questionar”, que aparecem por aí, mas não se refletem na atitude dos profissionais. Não é possível eximi-los de culpa, mas deve-se lembrar que jornalistas são seres humanos comuns, não super-heróis incorruptíveis (ainda que desejem muito sê-lo) e que, para garantir que suas reflexões sejam aplicadas na prática, faz-se necessário o envolvimento de toda sociedade nessa cobrança.

6 comentários:

Felipe M. Ferreira disse...

De todo o seu texto (muito bem escrito, por sinal), acredito que o trecho "uma atividade [o jornalismo] que interfere diretamente na realidade social" mostra o que mais tem-se esquecido atualmente. Se o jornalismo for para e por isso, desacredito de diplomas e acredito piamente nos "ingredientes do bolo"!

Gustavo Braga disse...

"Lois Lane ficaria orgulhosa!"

Alice Agnelli disse...

é, bru.
essas crises..

..mandou muito bem, como sempre.

Daniel Médici disse...

Você escreveu este texto há três semanas. Você mencionou as características 'heróicas' de um jornalista. Ontem, saiu no 'Mais!' um artigo de John Lloyd (“Os donos da história”) que começava: "Os últimos 150 foram a era do jornalismo heróico, um período em que os jornalistas desenvolveram sua auto-imagem como responsáveis por corrigir os males da sociedade". Parabéns, você furou a Folha por três semanas ;)

Lloyd errou. O jornalismo heróico não tem mais de 140 anos; talvez 130. Vá lá, quem sou eu pra ensinar um colaborador do Financial Times. Seu texto, basicamente, diz que o jornalismo heróico acabou e agora estamos entrando em um jornalismo que ainda não sabemos o que é.

Fico pensando se este novo jornalismo vai precisar dos jornalistas em crise existencial dos quais você fala... Antes disso, por que o jornalista é um ser em crise a priori?

Não faço idéia, mas tenho um palpite. O jornalismo (que você chama de romântico, e eu de ideal) só existe porque deveria refletir, ainda que imperfeita, a realidade - algo meio lacaniano, quem sabe: o jornalista é a imagem do desejo do leitor. Le miroir, pendant qu'imparfait, c'est moi (diria Flaubert)! Ora, os jornalistas são seres em crise porque vivemos num mundo em crise...

(Peninha me desmente: Disney é um mundo sem crise onde há um jornalista).

Se a democracia funcionasse, não houvesse guerras, sempre chovesse a quantidade prevista para o mês, quantos jornalistas não perderiam o emprego? Felizmente, a crise é um fenômeno humano, demasiado humano, e enquanto houver humanos por aqui certamente teremos algo fora do lugar.

(Uma vez eu acho que vi um humano, no metrô. Passava seus dias indo da Liberdade ao Paraíso e do Paraíso à Liberdade. Pensando bem, ele não era humano: era igual a todos nós.)

Se a crise continua, o que acontecerá com o jornalista? Sempre fui jornalista, que é uma maneira de nunca tê-lo sido. O mundo nunca prescindirá de seres em crise, mas Lloyd talvez esteja certo quanto a isso: ninguém precisa mais de jornalistas heróis.

Na verdade, ninguém precisa mais de heróis. Heróis (no sentido HQ do termo) eram necessários naqueles tempos Dr. Strangelove, o mundo à beira da extinção, o lado certo e o lado errado... Desde que Berlim não é mais duas, nós, jornalistas, somos mais ou menos como aqueles heróis de Watchmen, descartáveis, recicláveis – mal pagos.

E os jornalistas em crise? Igualmente, ninguém mais precisa deles: neste mundo de Berlins unificadas, quem é que não está em crise? Quem não se sente um pouco deslocado, debatendo-se antes de dormir, tentando encontrar sua posição, sua razão de ser? Foi-se o tempo das identidades sólidas, quando as pessoas precisavam comprar seu questionamento nas bancas ou livrarias – para depois dissipá-los na missa de domingo: hoje, não há quem não acorde com uma pergunta na garganta (meu filho é gay?, bi??, ainda tenho um emprego?, quem é deus?), para dissipá-la com um cartão de crédito .

Ninguém precisa mais de jornalistas, porque ninguém precisa mais de espelhos, sobretudo os imperfeitos: aquele, pendurado no banheiro, ou aqueles dois, no rosto das pessoas, nos bastam.

Bruna Escaleira disse...

Daniel,

Você lançou um ponto interessante. Mas devo discordar de sua conclusão. O jornalista é diferente do espelho do banheiro e “daqueles dois no rosto das pessoas”, porque não reflete apenas quem está em primeiro plano à sua frente, mas também o plano de fundo. Ou pelo menos é o que deveria fazer.

Imagino que ao escrever uma matéria, o sujeito poste-se frente ao espelho para averiguar se o estilo do texto lhe cai bem. No entanto, logo se distrai com alguma cena que ocorre atrás dele e vira-se para apurá-la. É mais importante que seu trabalho atenda à necessidade de exposição dos fatos à sociedade do que a seu desejo por um reflexo agradável.

Talvez, por isso mesmo, as pessoas não se sintam tão “refletidas” pelos jornalistas – que nem sempre mostram apenas seu lado belo. Aí elas podem correr com sua pilha de cartões de crédito e desfazer suas depressões nas lojas mais próximas. E o jornalista não devia ser o herói de seu ego consumista, devia é cutucá-lo. Acho que é isso, o jornalismo não deve sempre refletir, mas também provocar – provocar crises.

Realmente, as pessoas não precisam mais de heróis. Ainda bem. Quem sabe, então, os jornalistas deixem de tentar sê-lo e ajam de acordo com sua condição humana. E os humanos estão sempre em crise, assim como o mundo está sempre em crise. Por isso, creio que o único tipo de jornalista necessário e coerente aqui neste planeta é o que se questiona sempre – porque todo questionamento é uma crise.

Daniel Médici disse...

Bruna,

Talvez seja cedo demais para especular acerca da função social do jornalista no futuro, e até certo ponto infrutífero.

Só um louco diria que não haverá mais um jornalista daqui a 50 anos (relendo meu comentário, fiquei com a impressão de ter dito mais ou menos isso), mas aí estão os sapateiros - aí estavam - para mostrar que, afinal, profissões também acabam. Let's agree to differ, then?

Contudo, receio que temos muito mais convergências; acho você certíssima em associar o trabalho jornalístico à crise, ao questionamento, ao reflexo ou à provocação destes fenômenos. Nunca, em meus 3,1416 anos de ECA, vi isso tão bem explicado.

Porque quando o jornalista se exime das dúvidas e começa a cuspir respostas e certezas (cof cof, Veja, cof), aí sim é sinal de que o jornalismo perdeu sua função.