quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Farelos

Ao lado do ponto de ônibus, uma mulher discutia com um guarda. Quase me revoltei, quando percebi que se tratavam de dois amantes, ou ex-amantes. O homem indignou-se:
- Mas a gente tentou. Então não valeu a pena?
- Valeu. Mas foi como comer bolacha água e sal sem água depois. – Cuspiu a mulher.
Os olhos dele vidraram nela, um como interrogação e o outro como um ponto de exclamação berrante, que fazia até as sobrancelhas enrugarem.
- Isso mesmo! – Ela continuou – Falei, falei, sem parar. Você deixou eu te mastigar todo, frase por frase. Mas não me deu nenhum refresco, nenhuma gota, nem em forma de resposta, nem de olhar, nem de qualquer coisa! Só me deixou uns farelos de você, que se esconderam nos meus cantos durante esse tempo. Minha garganta está seca e eu tusso esses farelos!
Empurrou o ombro dela, de leve, em direção à porta do ônibus que havia parado e disse, mexendo os lábios sem mexer os olhos:
- Vai, este é o seu. Fiquemos em paz.
E saiu, os olhos vidrados no céu - era todo farelos. A moça depositou-lhe uma última olhada de cima a baixo, passando pelos olhos estagnados e as mãos trêmulas e subiu na “viação Parque Dom Pedro II”.
Subi no ônibus seguinte. Chegando em casa, fui tomar um chá. Imaginei que aquela mulher deve ter chegado na casa dela e tomado um chá também, quente, pra dissolver as migalhas e, depois, escovado os dentes. E eu recolhendo farelos de vidas por aí, pra jogá-los num caderno e jogá-lo no vento, que corre de vidas em vidas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Nossa... fiquei viajando no seu texto... gostei!

Anônimo disse...

Consegui ver todo o texto em forma de imagem, nitidamente! Muito bom mesmo... É engraçado, como aquele velho bordão: "A vida é uma novela". Mas acredito que a mulher sofreu muito com os farelos que lhe cutucavam a garganta... aquela sensação de migalhas que mais parecem milhares de biscoitos presos na goela. De tudo, no mínimo ela conseguiu cuspir um pouco de sinceridade na cara do amante indignado.
Até mesmo quem erra, sabe julgar o errado errado!