quinta-feira, 21 de junho de 2012

cidadelinha, cidadeletra



a madrugada é  o bastidor do dia
revela as artérias da cidade cinza
sem a cobertura colorida da multidão,
fica ainda mais difícil acreditar
que pelas veias de concreto corre sangue
- além dos os atropelamentos

a neblina gélida e fofa abaixa o horizonte
e leva um cima intimista às avenidas
tudo acontece fora de lugar
qualquer sinal de vida exterior aos carros
vira personagem de drama surrealista

um homem de terno e descalço caminha sobre a ponte, no meio da pista
pula, agita-se, tentando convencer algum veículo sem rosto a parar
não fiquei pra ver se conseguiria
a distância e o medo abortam as relações urbanas e seus causos
- a pressa indiscutível e inútil

teria sido roubado e largado sem lenço ou documento?
teria tido o juízo furtado pelo caos urbano
e cometido o desacato de unir pele a asfalto?
seria um artista em performance incompreendido?
pegadinha de televisão?
novo golpe de bandidos?

ou nada.
como se sente, vulnerável na imensidão em tons de cimento
a frieza do concreto absorve a vida dos neurônios
mal se consegue pensar, situar-se
hesitando-se a esmo
num misto de deriva e repulsa

se tivesse seguido esta última, a reação,
dissiparia a cortina de poluição que cega olhos e batimentos cardíacos
e chegaria a uma ilha viva
onde homens interferem no concreto inabalável

são trabalhadores viários da escuridão
saem apenas quando a cidade dorme
para regular suas linhas
como escritores ou revisores de texto

apagam buracos, reescrevem rascunhos de sinalização
com britadeiras, retocam caminhos antigos
trazem surpresas,
vingam-se nos retornos inalcançáveis
e zelam garantindo passagens seguras

a cidade é um enorme projeto gráfico
que deve ser coletivo para dar certo
cada vírgula
(linha branca ou amarela, pontilhada ou contínua, mureta, placa)
deve ser discutível

a cidade não é à priori
não foi sempre assim
não nasceu,
foi nascida
cada alicerce é uma construção
o concreto que mata a vida não existe sem ela
é preciso uma mão para despejá-lo
- mão de carne, ainda que atrás de outra metálica

eu vi o pincel que pinta as ruas
eu vi um homem, sozinho, grampear as quebras de página de uma avenida
- com aquelas “tartarugas” amarelas

eu vi a cidade sendo escrita
e depois daquela madrugada,
quis mudar suas palavras

...

cidadezona
cidadezinha

cidadelona
cidadelinha

cidadeletra
cidademinha

.

terça-feira, 10 de abril de 2012

chá de chuva


faço um chá com a água da chuva
e deixo que ela destile meus caroços
sonhos remoídos, dúvidas inacabadas
que se aglomeram no pescoço
e impedem o correr do ar

deixo que o vapor os dissipe
e que sua própria fumaça me acalante
misturada ao sabor da infância:
hortelã

uma xícara de chá é como colo de avó
tem qualquer coisa de refúgio e certeza
que combina perfeitamente com a instabilidade da chuva
e o mantra tranquilizante dos gotejos

lá fora, as gotas são tormenta e resfriado
aqui dentro, trégua e aconchego
dessa duplicidade vem seu dom de destilar problemas
substância pesada e grudenta
contra a chuva leve e escorregadia

chá vai chovendo
chuva vai fervendo
e os caroços amolecendo
derretem-se e misturam-se
escorrem pelas veias
e evaporam aos poros todos
suadouro refrescante de hortelã:
cuca fresca!

A verdade sobre meu avô


Uma homenagem mais do que merecida à melhor pessoa que já conheci

Quem vive plenamente só fazendo o bem deixa tantos frutos que é até difícil de contar e continua vivo nos corações de cada um que cativou.

Um herói que guerreou desde pequeno como pastor de ovelhas e agricultor em Portugal. Não poderia ter recebido nome mais adequado, pois refletia, verdadeiramente e sem esforço, o espírito de São Francisco de Assis: humilde, amante e zelador dos animais, plantas e pessoas.

Veio para o Brasil com uma mão na frente e outra atrás, carregando a filha de apenas nove meses e a esposa. Aqui, foi construindo sua vida de forma simples e alegre. Trabalho, para ele, era uma brincadeira e não havia lugar por onde passasse em que não fizesse amigos e não ajudasse a alguém.

Mesmo sem completar o ginásio, tinha mais consciência de mundo e sabia da vida muito melhor do que um PHD. Dava valor somente às coisas simples e mais importantes: a família, os inúmeros amigos, o amor, passar tempo com os queridos, ajudar os outros, cuidar das plantas, flores e hortas, comer bem uma comida simples e saborosa feita com carinho, papear, rir, fazer os outros rirem, jogar um baralhinho e, é claro, tomar uma branquinha de vez em quando.

Não almejava luxo ou fama, por isso, teve a vida mais plena, confortável e feliz que pode haver e ficou mais famoso que muitos artistas globais.

Tanto esforço só lhe trouxe alegrias: viu a família crescer bonita e forte. Sua filha a cada segundo ao seu lado, seu orgulho. Vinda do nada, se formou em arquitetura e construiu outra família linda, que também sempre esteve ao lado do avô. Sua neta, seu maior orgulho, também não o decepcionou, sempre se destacou nos estudos, se formou jornalista na USP e, o mais importante, se tornou uma pessoa de bem como ele ensinou. 

Foi meu segundo pai. Muito mais que o melhor avô que pode existir. Tivemos a sorte de conviver intensamente durante estes 23 anos, nunca passou uma semana em que não fosse visitá-lo, no mínimo, uma vez - o normal era várias vezes e se falar quase todos os dias.

Ele me ensinou o que de mais valioso carrego para sempre. Não poderia ser mais agradecida a ninguém. Tenho muito orgulho de carregar um pedacinho seu comigo e vou me esforçar sempre para ser um pouco como ele.

Português turrão, apesar de extremamente doce e emotivo, ralhava com a esposa de vez em quando - e vice versa -, mas os dois nunca se largaram - amor de verdade.

Ajudou o genro como se fosse seu próprio filho e foi cuidado por ele como se fosse seu próprio pai – e foi também!

Sua profissão refletia bem sua essência. Entregador de pão e leite, era aquele que fazia os dias começarem mais leves e gostosos. Chega a ser poético, pois o pão é símbolo de vida e de compartilhar. Em cada pãozinho, o “Chico do Pão” passava pra frente um pouco da alegria que transbordava do seu sorriso sempre aberto - alimento pro corpo e pra alma. 

Por fim, teve a sorte de não sofrer um segundo sequer e se foi como um anjo de verdade, depois de ter cumprido, não apenas sua missão, mas a missão de, pelo menos, umas dez pessoas. Inesperadamente, sim, mas porque não suportava despedidas – haja visto que quando se aposentou, não quis avisar os clientes, que já eram amigos e passaram a ligar sem parar perguntando sobre sua volta.

Viveu intensamente tudo o que quis e como quis. Não importa quantos anos, teve uma vida plena e completa, como todos desejariam ter.

Foi feliz e tenho certeza de que é feliz. Se foi apenas quando teve a certeza de que aqueles ao seu redor ficariam bem.

Ama e é amado por todos para sempre.

Não existe pessoa no mundo que tenha algo ruim para falar dele. As inúmeras lembranças que permanecerão vivas eternamente são todas maravilhosas!

Nunca houve adeus com mais pessoas queridas sinceramente presentes.

Seu Francisco, “O Rei do Ferreira”! O melhor pai, avô, marido e amigo do mundo! A alegria e paz em pessoa!

Hoje faz cada raio de sol mais brilhante e floresce em cada botão de rosa, pezinho de hortelã ou de alface, além de vibrar nas asas dos mais lindos beija-flores e borboletas e alegrar cada ser vivo.

quarta-feira, 14 de março de 2012

céu só

o céu estático
observa minha solidão
só minha
e de todos os desiludidos
só minha
e de todos os habitantes da grande São Paulo
só minha
[não sei o que dói mais]

a boca esbanja margaridas
e os olhos disparam faíscas certeiras
- a esmo
o coração soluça suspiros
e a mente tagarela dúvidas
os ouvidos estão desregulados
veem festa e choro na mesma frase
- dependendo da hora do dia
e já não se ouve mais olhos

o céu piscante
assiste minha confusão
só sua
e de todos os amantes
só sua
e de uma vida inteira
só sua
[não sei se é só meu]

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Manifesto Contra o Ar Condicionado

sempre me foi muito difícil a assepsia
a remoção das micropartículas vivas restantes
além de obsessiva, é ilusória
- há muito mais micróbios nocivos ao humano num filtro de ar condicionado que numa horta encharcada pela chuva

o minimalismo moderno é forte, mas duro
tira a umidade das coisas, e com isso, sua vivacidade
acaba por ser ainda mais frágil que a vida natural
- provem-me que criança criada em gaiola de vidro, concreto e desinfetante é mais forte que a criada de pé na terra seca ou no barro, e mudo de ideia

a sujeira do asfalto, a poluição do "progresso" me dá asco
entope os poros, irrita as narinas, coagula as sinapses cerebrais
é mais que uma discordância ideológica
a megalópole é hostil à vida fora do vidro
meu problema com o progresso ultracapitalista é uma questão biológica.

domingo, 25 de setembro de 2011

comer o mundo com as mãos


Viver é comer o mundo aos pedaços ou tentar enfiá-lo na boca de uma só vez. Há aqueles que preferem apreciá-lo, sentados à mesa, sobre uma toalha e com a ajuda de quantos pratos, talheres e outros apetrechos a etiqueta pedir. Outros se contentam em degustá-lo sob o intermédio de um guardanapo de papel apenas, que vai chupando seu sabor, ficando melado e, ao final, é preciso lavar as mãos de qualquer jeito. Já eu prefiro devorá-lo pegando bons bocados com as mãos. Vou sentindo sua textura antes mesmo de colocá-lo na boca e, por fim, ainda lambo os dedos – pra onde escorrega a melhor parte. Muitos me chamam de gulosa, mal educada, troglodita. A estes digo que prefiro aproveitar bem sabor por sabor, afinal, cada época tem sua colheita e nem tudo no mundo é “open bar”.

O ser mais faminto que existe é a fome. Sente seu cheiro de longe, chega lambendo os cabelos, mordiscando as unhas e, num surto voraz, rasga a pele e engole tudo, víscera por víscera, músculo por músculo, até corroer os ossos, lentamente cruel. Os dias que ela domina, cotidianos nos lugares mais esquecidos do mundo – lembrados sequer pelas maiores redes de fast food da Terra, famintas por dissipar o maior número de culturas possível -, são dominados também por uma enorme ânsia de caça. O problema é que, com o passar do tempo, a fome termina por comer também essa ânsia e já não se sente fome alguma.

Só existe fome no mundo por um problema de receita, afinal, o armazém da Terra transborda comida que poderia alimentar outro planeta igual a este. Mas acontece que, há muito tempo, começaram a girar a massa do bolo pro lado errado e foi-se criando buracos de famintos e caroços de obesos. Nesses caroços, aglomera-se gente que aparenta estar muito bem alimentada, mas é fraca de vida, porque se entope de fast food que não alimenta, feita de soberba e ignorância; são verdadeiras cascas balofas ocas por dentro. A massa do mundo só não desanda de vez, porque ainda existem famintos, magrelos por fora, mas muito bem nutridos por dentro, que se alimentam de dignidade e amor e conseguem força pra girar no sentido oposto.

Apesar de existir fome, há também uma variedade sem fim de buffets de self service espalhados por aí. Quem sofre com eles são os indecisos e ansiosos que, no desespero de provar tudo o que veem, acabam não conseguindo comer nada antes que a comida esfrie ou, pior, o restaurante feche. O mundo é feito de surpresas que se descobre conforme se forma o paladar. Essa formação é um processo de aprendizado que não tem certo ou errado, apenas uma regra: salvo os ingredientes venenosos, não se pode ter medo de experimentar sabores desconhecidos, afinal, são eles que expandem nossas papilas gustativas e nos fazem dar a volta ao mundo sem sair do lugar. A vida é feita também de ingredientes constantes, alguns tão enjoativos que podem provocar aversão ou  intolerância alimentar só de se sentir o cheiro – é o caso da injustiça, mais um ingrediente utilizado pelas redes de fast food -, outros tão deliciosos que se pode comer todo o dia, não enjoar nunca e ainda pedir mais – como arroz e feijão ou pão.

Como o mundo é farto de comida, é farto também de gula. Alguns chamam de guloso àquele que faça banquete com todas as regalias e toalhas e talheres e babados e cerejas em frente a uma fila de famintos, sem oferecer pedaço sequer. Neste caso, há uma confusão de temperos nas palavras, afinal, a isso não se chama gula, e sim crueldade. Outros chamam de gulosos àqueles que passam horas, dias, semanas preparando as mais elaboradas guloseimas com enormes doses de carinho e dedicação para dividir com pessoas queridas. Isto não é gula, se chama celebração e é outro ingrediente necessário para o bom andamento da massa do nosso bolo.

No fim das contas, a vida  é mesmo um festival de sabores do café da manhã à ceia. E, como não poderia deixar de ser, no cardápio, o melhor de tudo fica pro final, como sobremesa. O amor é um mousse de chocolate tão intenso que preenche todas as papilas gustativas da língua e confunde as sinapses do cérebro de prazer. Ainda transborda, molhando os cabelos, correndo nas veias, inundando as pupilas – por isso dizem que é cego – e entrando pelos ouvidos. O sabor é tanto que, para apreendê-lo, é preciso absorvê-lo por todos os poros e, ainda assim, sempre sobra um pouco para lambuzar os dedos e escorrer pelo chão até o fim do mundo.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Beira

quando vou à praia
me sinto à beira do mundo
o mar fosse janela pro espaço
este mar capaz de pôr fim ao espaço dos homens,
seu mundo
é um outro mundo por si
 
gosto de estar à beira das coisas
lá se enxerga longe e perto
se avista entre
se entende coisas que não se entendem em outro lugar
só na beirada,
quase mergulhando no outro
 
já que não se pode sair do próprio corpo
criamos corpos cheios de beiradas
pontos de contato, eminência
de a minha beira desaguar na sua
como borderliner de loucura
as fronteiras se dissolvem, se dilatam
se suprimem, se comprimem
à beira de se refazerem,
novamente fortes

as beiradas não chegam a se desfazer
mas desfazem o mundo como o vemos
à beira, mudam-se pontos de vista
reconstroem-se conceitos
avistam-se novos horizontes
novas bordas universais,
quase pontos cardeais estendidos
 
quando estou à beira da cidade
me sinto grande
posso observar muitas beiradas à distância
passear entre elas
provar vários mirantes a cada perímetro
 
ao mergulhar na metrópole
as beiras entre as coisas se estreitam
me sinto pequena de comprimida
de não conseguir enxergar todas as bordas que me cercam
minha mente se perde juntando e separando fronteiras
que acabo por perder minhas próprias beiradas
e fragmentar minha identidade
à beira d’um arranha-céu interminável,
quase sem borda

nem toda beira é essencial
mas é bom que existam beiradas
não fosse assim, todas as cores se misturariam
e não existiria cor alguma
o mundo não teria nuances
nem emoções
não seria, sequer, vazio
seria apenas massa inerte,
sem desejo

mas à beira do mar
ouvem-se as vozes do oceano
e costuma-se desejar muitas coisas
como saber o que há pr’além dele
ou abandonar a beira num mergulho
com ou sem volta.