sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sanidades,

Declaração do Sr. W:

Um dia aprendi a ler e a escrever, à altura do pré-primário. Depois saí da escola sem sair e nunca mais usei tais competências. Até que um dia me presentearam com um livro. Não havia sentido algum em dar um livro a alguém como eu, e confesso que foi o tédio numa tarde de sol que me fez abri-lo. Foi um ingresso sem volta.

Poderia descrever-lhes, especificamente, o nome do autor, da obra, da editora, coleção, detalhes da história, relato, teor das reflexões, peso do objeto, textura da capa, cheiro do papel. Mas tal atenção suscitaria associações de que qualquer um desses fatores teria sido o responsável por minha perdição no mundo das letras pensadas. Não o foi. O ingresso foi sem volta, não num livro específico, mas nessa mania, vício, síndrome que me é escrever.

Acontece que depois de devorar aquela quantidade limitada de páginas antes do entardecer, nunca mais consegui ler um livro inteiro. Nem romance, nem relato, jornal, revista, panfleto, a nada disso alcanço o final – salvo em condições extremamente adversas.

Tantas vezes o interesse me transborda a mente por tal assunto ou história, mas é só começar a ler sua primeira frase que me possui um ímpeto de escrever maior que as necessidades de alimentação e sono para um ser humano; não posso reler, sequer, o que escrevi. Minhas mãos revezam-se, a direita e a esquerda, preenchendo cadernos, folhas, telas de computador, guardanapos, paredes, lençóis, vidros, ladrilhos, asfalto, pele. Tudo para que as deambulações mais, ou menos, absurdas não sublimem aos cuidados da mente superestimulada dos dias de hoje.

Foi assim que lancei uma infinidade de orações, ordenadas ou desordenadas, nos mais diversos formatos – folhetos, cartazes, livros, revistas, poemas, reflexões, palavras simplesmente juntas -, obtendo um pouco de lucro, insuficiente tanto para sanar minhas necessidades humanas como para cessar essas ânsias de escritura. Fiz dessa minha profissão, não apenas por prazer, mas por falta de escolha, já que não sou capaz de terminar qualquer atividade sem interrompê-la por instantes imprevisíveis à caneta ou ao teclado.

Por não ler as coisas até o final nem revisar meus escritos, acabei por confundir informações importantes de assuntos ou pessoas sobre os quais, inconscientemente, resolvi referir-me posteriormente, inferindo em erros cujas conseqüências ficaram a cargo da famosa Justiça – sobre a qual li em alguns fragmentos. Foi assim que me vi obrigado, aos quarenta e dois anos, a ler o segundo texto completo da minha vida.

A determinação foi do advogado, que acontece de ser meu primo e não abriu mão de me fazer um cidadão consciente, ao ler o processo que me foi imputado. Não sem cansaço.

Para concluir a leitura, era preciso colocar-me numa situação em que seria completamente impossibilitado de escrever. Foi então que me lembrei de um episódio, quando tinha cerca de dezenove anos, em que quebrei os dois braços ao jogar uma pelada com os amigos – no intervalo de uma escreveção e outra. No hospital, imobilizado, fui presenteado com uma carta de minha namorada na época, à qual li in-tei-ri-nha, não sem tentar livrar-me do gesso. Depois pedi para a enfermeira chamá-la antes que saísse do hospital, “que era caso de vida ou morte”, e consegui responder-lhe oralmente! Convencidos de que aquela proeza só podia ser obra de um amor inabalável, decidimos nos casar anos depois. Depois, inclusive, descobrimos que amor e inabalável não ficam lá tão bem na mesma frase, mas isso já é outra história.

Bem, pois então pensamos em engessar meus dois braços, e colocar-me numa sala vazia, sem janelas. E o fizemos. Acontece que havia um telefone com viva-voz numa mesinha próxima à cadeira onde me encontrava. Lá pelo terceiro parágrafo do processo, consegui apertar o botão do viva-voz e o que ligava para a recepção com o pé – já que estava no prédio do escritório onde meu primo trabalha – e pedi para a secretária que tomasse nota do que eu fosse dizendo. Resultado: não consegui terminar de ler o processo e quase fui processado novamente, pela supervisora do escritório, que considerou anti-ética a atitude de citar um caso judicial em plena portaria de um edifício movimentado, sede de um renomado escritório de advocacia que primava pelo sigilo absoluto de seus clientes, “o que as pessoas que passavam por ali iriam pensar?, que chacoteamos suas ações pelo auto-falante?”.

Aí resolvemos ser mais drásticos: cheguei a luxar minhas duas mãos – com a ajuda de minhas filhas a jogar vôlei com uma bola dura demais -, colocar uma camisa de força e algemas, sentado no chão no meio de um galpão vazio apenas com o processo a minha frente, sem água ou comida. Depois de uma tarde de delírios, consegui finalizar a leitura – do meu terceiro, não segundo texto. Em seguida, meu primo me soltou para que assinasse meu recurso de defesa. Ele se encarregou do processo e fui inocentado devido à minha condição de “sanidade precária”, sob a prerrogativa de realizar tratamento psiquiátrico por, pelo menos, três meses.

É por isso que aqui estou. Escrevo no divã, porque hoje o psiquiatra resolveu que era hora de analisarmos meus textos. Instantaneamente, instalou-se em mim aquele ímpeto avassalador de escrever. O profissional, cheio de sua teoria de “observação sem interferência”, encorajou-me a seguir em frente com o que me sentisse à vontade em fazer. Depois de três horas, ele se cansou e foi atender outro cliente na sala ao lado.

Há alguns minutos, outro homem vestido de branco bateu aqui na porta e perguntou meu nome. Depois da resposta, saiu. Achei que havia se enganado, mas agora ele se prepara para entrar novamente. Desconfio que farão algo para separa-me deste papel. Sim! Com certeza o farão! Oh não! Ele segura uma camisa de força! Mas quem é para dizer o que é sanidade ou loucura? Por que razão deveríamos aceitar que amarrar um semelhante é uma atitude mais aceitável do que sucumbir aos disparates inerentes à vida em sociedade? É certo, vão me tirar a caneta! Acho que ainda consigo escrever uma última declaração. Se não terminar a próxima frase, é porq

2 comentários:

Gustavo Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gustavo Braga disse...

_ leituras não terminadas criam aquela falsa noção do que conversamos com tanto gosto na mesa de um bar, no almoço com o pessoal do trabalho ou com o companheiro pessoal. se o conhecimento é poder e poder não é algo divisível, - de maneira hipotética - então não existe meio-poder ou meio-conhecimento. agora, não é à força que fazemos os outros - principalmente a nós mesmos - perceberem e repararem os 'erros' - entre aspas, pois errar é uma forma muito dúbia de se julgar algo ou alguém. mas, mesmo com leituras não terminadas, somos seres humanos, daqueles bem terrestres, cheios de vontade e desejos. se um dia a semente da meia-leitura foi plantada ao se dar um presente, como acham que a semente do resto da leitura poderia ser plantada na base da porrada? com um gesto amoroso/bondoso alcançamos o impossível. larguemos o possível para os que o adoram, pois ciência e nem mesmo a religião (supondo que esta tenha algo a ver com o real possível, o que na verdade não tem) ainda não explicam o que é 'amor' - ainda bem. amor mesmo, nada de amour, daqueles que se iniciam revoluções e ações sociais, vontades e soluções, etc.

sei lá, amor de louco é assim, sem sentido... pra quem não é louco... mas quem é louco, afinal? quem tem sentido ou quem tem sentimento?