sábado, 5 de abril de 2008

Atutab Egroj

I

Jorge Batuta nasceu ao contrário. Chutava tanto a barriga da mãe que tentaram fazê-lo sair antes do tempo. Mas Jorge já era do contra antes mesmo de se conhecer por gente e ficou enrolando até dois dias depois do período máximo de uma gestação. O parto por cesariana estava marcado, mas aí foi ele que cansou de esperar e quis sair do seu jeito. Escorregou primeiro as pernas, depois a cabeça e quase escapou do colo do médico estupefato. Agüentou a dor e o susto das palmadas de ponta-cabeça e só começou a chorar quando foi abraçado confortavelmente pela mãe.

O mundo lhe parecia todo errado, a começar pelas pessoas e sua mania de andar com os pés no chão. Então aprendeu primeiro a plantar bananeira – imagine um bebê de dois anos de idade andando pela casa de cabeça pra baixo, apoiado nas mãos.

Mãe é sempre mãe, até quando o filho é do contra, por isso Marizete desconversava quando mencionavam as anormalidades do pequeno Jorge. A dona de casa e costureira nas horas vagas dizia que a criança havia herdado o dom do falecido avô, que trabalhara alguns anos no circo – só não mencionava que sua ocupação fora a de motorista do caminhão que levava a lona e o picadeiro, o que não requer nenhuma habilidade circense.

Seu Arlindo, o pai, preocupava-se especialmente com o momento de colocar o Batutinha nas escola. Se a família acostumara-se ao comportamento peculiar do garoto, as outras crianças de outras famílias provavelmente não se adaptariam facilmente. Quando chegou o inadiável primeiro dia de aula, Arlindo Batuta apresentou-se à sala de aula do filho duas horas antes do horário normal para uma conversa muito séria com a professora. Era preciso avisá-la das manias de seu filho, pedindo-lhe paciência extra com a criança, além de garantir que estaria à disposição para reuniões de pais e mestres sempre que necessário – afinal, não queria confusões que tirassem a bolsa de estudos do menino em uma das melhores renomadas escolas do país, que a empresa de calçados na qual trabalhava oferecia somente aos melhores e mais obedientes funcionários.

Sandrinha Solene levou um susto ao deparar-se com uma grande mão de operário oferecendo-lhe uma bela maçã vermelha, antes mesmo de poder alcançar sua mesa na sala 402. Soltou um gritinho atrapalhado que lhe arrepiou levemente os cabelos ruivos, compridos e ondulados na mesma medida em que acelerou o coração politicamente correto de Seu Arlindo:

- Bom dia, fessora! Tenho uma conversa importante pra ter com a senhora. Mas antes, aceita essa maçã e pode ir comendo, se estiver com fome, enquanto eu desabafo um causo da vida.
- Ahh, o senhor é pai de algum aluno? Seu...
- Arlindo Batuta, sou pai do Jorginho.
- Certo, Sr. Batuta, o senhor tem alguma preocupação em relação ao seu filho?
- Sabe o que é, dona...
- Sandra, Sandra Solene.
- Então, dona Sandrinha, o Jorge é um menino muito bom e esperto, nunca vi criança aprender tão rápido todo tipo de coisa! Mas ele é meio birutinha, tem uns parafusos a menos, sabe como é.. E às vezes fica um pouco teimoso. – Começou Seu Batuta, sem saber por que resolvera chamar a formosa moça pelo seu nome no diminutivo.
- Entendo, Sr. Batuta, mas isso é normal, as crianças nem sempre fazem sentido pra nós adultos, mas na verdade, muitas vezes são elas as mais espertas na maneira como lidam com o mundo. Elas têm uma inteligência que só nasce da pureza.

A professorinha certamente não imaginava o grau de peculiaridade ao qual Seu Arlindo se referia quando tentou explicar o temperamento do pequeno Jorge, mas logo o pai percebeu que seria inútil gastar mais palavras, uma vez que o garoto esclareceria tudo em dois minutos dentro da sala. Além disso, as poucas frases que lhe restavam na boca derreteram-se ao ouvir a doce resposta da educadora, que lhe soaram como música acariciando seus ouvidos cansados de vozes duras, os quais, nem sua mulher conseguia mais amaciar.

Foi a primeira vez que Arlindo sentiu algo fora das normas sociais, algo com um quê de proibido. Sentiu de maneira tão inédita que sequer percebeu o aviso do pecado que se aproximava.

- Agora acho melhor o Senhor se retirar, Seu Arlindo, pois logo as crianças chegarão e se houver um pai aqui dentro, todos os outros vão querer entrar e vai ser difícil retirá-los antes do final do dia. Afinal, é preciso que os pequeninos se acostumem ao novo ambiente longe de casa. – Discorreu Sandrinha, com leveza, retirando o homem do transe que ela mesma, sem querer, havia instalado em sua mente.

Batuta acenou com a cabeça e foi saindo, andando desajeitado de costas. Quando algumas sílabas finalmente voltaram a sua boca, já estava no corredor e murmurava a pergunta de quando poderia vê-la novamente, no exato momento em que esbarrou na barriga interminável da diretora da Escola dos Pinhais. Marieta Maledetta fazia sua ronda matinal, com o olhar habitualmente ameaçador a toda e qualquer criatura viva dentro de suas dependências e não deixou de assustar um pouco mais o pai aflito de Jorginho. O operário recuperou a compostura num sobressalto e saiu da escola direto para o trabalho a passos firmes.

Não havia tanto com o que se preocupar, Jorginho habituou-se incrivelmente bem ao sistema escolar – sem que precisasse se adaptar a suas regras. Decidiu, assim que pisou na sala de aula, que não tinha vontade de ficar sentado enquanto a professora escrevia pra lá e pra cá na lousa. Antes de gastar esforços em vão tentando prender o garoto a uma cadeira, Sandra teve uma idéia melhor: transformou Jorginho em seu escrivão oficial, estava encarregado de escrever com o giz tudo o que a professora mandasse – ou melhor, tudo o que ela quisesse, segundo o menino, pois para ele mandar não tem razão de ser, as pessoas apenas expressam suas vontades, hora um atende as vontades dos outros, hora os outros atendem as suas.

É claro que os outros alunos também se candidataram ao cargo de escrivão e Sandra deixou-os experimentar a função. Mas, um por um, foram desistindo, devido ao cansativo regime de escrever e apagar giz poeirento o dia todo. O único que não desistiu foi o pequeno Batuta, em vez disso, tornou-se uma verdadeira máquina de escrever e adquiriu vasto conhecimento gramatical antes que o resto das crianças aprendesse a separar as sílabas com facilidade.

A hora o recreio não podia ser hora de correr e pular para Jorginho, ele já fazia isso pra alcançar os cantos da lousa durante as aulas, então, sentava-se à carteira enquanto comia seu lanche ou brincava de fazer lição de casa fora de casa – só pra ser do contra.

***

4 comentários:

Anônimo disse...

Isso ai é o capítulo de uma autobiografia da sua infância? :P

Quando eu era criança minha mãe conta que eu passava a maior parte do tempo na biblioteca da escola, que eu era tão "hiperativo" (do tipo nem a professora te aguenta mais) que eu tinha milhares de tarefas, e passava a maior parte do tempo na biblioteca.

Infelizmente, não sai bom escritor, apesar de tentar as vezes e fiquei mesmo com os números :P.

O titulo ficou bem massa :p

Bruna Escaleira disse...

hahahha
bem diria que não, isso não é uma auto-biografia da minha infância.. tá, eu sou meio do-contra às vezes, mas não sempre..

Anônimo disse...

ser do contra é legal ^.^, afinal alguém tem que ser :P. O que não tem graça é ser do contra sempre.

Sabe do que eu me dei conta agora? Talvez eu devesse ler novamente o que eu escrevo porque o outro comentário não tem o menor sentido hehe.

Eu ficava na biblioteca.. bla bla bla e eu ficava na biblioteca :p.

Acho que a idéia é a de que esgotadas as coisas para fazer na sala de aula, eu era mandado para biblioteca ler alguma coisa, ou atazanar outras pessoas.

Pedro Sibahi disse...

Sabe que eu quase me identifico?
Demais Bruneca!!