a madrugada é o
bastidor do dia
revela as artérias da cidade cinza
sem a cobertura colorida da multidão,
fica ainda mais difícil acreditar
que pelas veias de concreto corre sangue
- além dos os atropelamentos
a neblina gélida e fofa abaixa o horizonte
e leva um cima intimista às avenidas
tudo acontece fora de lugar
qualquer sinal de vida exterior aos carros
vira personagem de drama surrealista
um homem de terno e descalço caminha sobre a ponte, no meio
da pista
pula, agita-se, tentando convencer algum veículo sem rosto a
parar
não fiquei pra ver se conseguiria
a distância e o medo abortam as relações urbanas e seus
causos
- a pressa indiscutível e inútil
teria sido roubado e largado sem lenço ou documento?
teria tido o juízo furtado pelo caos urbano
e cometido o desacato de unir pele a asfalto?
seria um artista em performance incompreendido?
pegadinha de televisão?
novo golpe de bandidos?
ou nada.
como se sente, vulnerável na imensidão em tons de cimento
a frieza do concreto absorve a vida dos neurônios
mal se consegue pensar, situar-se
hesitando-se a esmo
num misto de deriva e repulsa
se tivesse seguido esta última, a reação,
dissiparia a cortina de poluição que cega olhos e batimentos
cardíacos
e chegaria a uma ilha viva
onde homens interferem no concreto inabalável
são trabalhadores viários da escuridão
saem apenas quando a cidade dorme
para regular suas linhas
como escritores ou revisores de texto
apagam buracos, reescrevem rascunhos de sinalização
com britadeiras, retocam caminhos antigos
trazem surpresas,
vingam-se nos retornos inalcançáveis
e zelam garantindo passagens seguras
a cidade é um enorme projeto gráfico
que deve ser coletivo para dar certo
cada vírgula
(linha branca ou amarela, pontilhada ou contínua, mureta,
placa)
deve ser discutível
a cidade não é à priori
não foi sempre assim
não nasceu,
foi nascida
cada alicerce é uma construção
o concreto que mata a vida não existe sem ela
é preciso uma mão para despejá-lo
- mão de carne, ainda que atrás de outra metálica
eu vi o pincel que pinta as ruas
eu vi um homem, sozinho, grampear as quebras de página de
uma avenida
- com aquelas “tartarugas” amarelas
eu vi a cidade sendo escrita
e depois daquela madrugada,
quis mudar suas palavras
...
cidadezona
cidadezinha
cidadelona
cidadelinha
cidadeletra
cidademinha
.
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