As coisas mais corriqueiras da vida frequentemente passam despercebidas, parecem absolutamente desimportantes perto dos infindáveis compromissos sempre importantes dos paulistanos. Tais compromissos ajudam a aumentar os níveis de congestionamentos que, sob qualquer chuvinha, param a cidade. E quando a chuva não é qualquer, é muita, acontece o que muitos conhecem apenas da Bíblia ou de contos fantásticos: algo apelidado de caos. Foi isso o que aconteceu hoje e que me impediu de ir trabalhar, então, fui obrigada a prestar atenção em algumas pequenas coisas do meu cotidiano e descobri que elas podem guardar segredos muito maiores do que a importância que lhes é dada – ou podem apenas ser mote de uma história engraçada.
Pois bem, no fatídico dia do caos na cidade, fui ajudar minha mãe a fazer o almoço em casa.
- Bruna, faça o arroz.
Certo. Ao pegar o “tuppeware” do dito cujo, percebi que algo se sobressaía entre os grãos. Pela noite mal dormida e a falta de óculos, não conseguia discernir muito bem, mas me parecia absurdo que houvesse um grão assim tão maior que os outros e com uma coloração bem diferente. Depois de esfregar bem os olhos, finalmente enxerguei: tratava-se de um pão, meio duro, bem no meio do arroz.
Tá, não era lá um pedaço de nave espacial ou algo tão exótico quanto isso, mas convenhamos que não é lá muito comum encontrar um pão francês devidamente guardado no pote de arroz, devia ter caído e sido esquecido ali há tempos, nossa, como não prestamos atenção às coisas que fazemos por causa desse dia-a-dia louco e... (minha boca interrompeu minha própria digressão)
- Mãe, o que, raios, este pão velho e endurecido está fazendo dentro do pote de arroz? – disparei, esperando receber uma resposta tão inconclusa quanto a minha.
- Ah, é o Pão de Santo Antônio, oras! – despejou ela, com uma naturalidade de quem até usaria a sigla PSA para se referir ao dito alimento.
- Aaaaaah! E o que ser isso? – indaguei, no mesmo desesclarecimento.
- É o pão que a Vó levou pra benzer na missa no Dia de Santo Antônio. Tem que guardar ele aí pra não apodrecer até o próximo ano, quando tiver a missa de novo.
Ao que utilizei mais um do meu estoque quase vazio de “aaah”s, seguido de:
- Mas pra que ele serve?
- Bom, dizem que Santo Antônio é o santo casamenteiro, né...
- Mas, que eu saiba, você já casou, não?
- É, mas...
- Então espero que você não tenha nenhum plano de pedir a qualquer meio possível ou impossível (como parece mesmo ser o caso do pão no arroz) para que eu me case! – isso fui eu tentando dar uma de durona.
- Nãao, mas Santo Antônio não atende só pedidos de casamento... Ele cuida também do bem estar da família, da casa, sabe?
- Sei... Então o tal santo se materializa num pão francês duro e faz com que as pessoas se dêem bem ao depositar alguma substância conhecida como “benção” no arroz que elas comem... Essa tal de benção não é outro nome pra algo do tipo... Maconha?
- Menina! Até parece que você não fez catecismo! Benção é uma coisa santa...
- Aaah, por isso então que o nome da mãe de Jesus é Maria, só pode ser de Maria Joana, de Marijuana... Agora tudo faz sentido! Por isso que Jesus era tão paz e amor e... – ao ser fuzilada pelo olhar da minha mãe, que parecia ameaçar que eu não tivesse direito ao almoço depois dessa, resolvi abortar a sabatina – Ok, ok. É, o pão até que faz sentido.
- Claro que faz. Então coloque ele de volta na tigela, bem mergulhado no arroz!
- Sim, senhora!
Naquele dia, não tive dor de barriga após comer o arroz, nem outro efeito colateral que a tal benção poderia provocar, e também não fiquei mais amorosa, nem mais irritada. O fato é que o pão no arroz me fez perceber o quanto nos prendemos a crenças por toda parte. O problema não é ter as crenças, o povo brasileiro, inclusive, é mais interessante por causa das milhares de crenças e superstições que esconde em cada canto do seu cotidiano. O problema é a maneira como as pessoas costumam defender essas crenças ao lidar com outros que não as possuem.
Quando alguém esbarra numa crença de outro, esse outro parece assumir uma postura inevitável: estufa o peito, como quem vai defender uma multidão de crianças famintas, e fala com ar de superioridade de quem já entende uma verdade absoluta, e que precisa passar ao pobre que não entende; por um minuto, esquece que está falando apenas de algo como um pão no arroz.
Não deixemos nossas crenças por um ceticismo que chega a ser quase uma doutrina tão forte quanto as das Igrejas. Mantenhamos elas colorindo becos e cantos das casas, pra que alguém as descubra num dia de chuva. Mas não as tomemos como uma bíblia, que, não raro, é tomada quase como uma arma. Deixemos a diversidade aflorar.
Agora me pergunto: o que haverá dentro do pote de feijão?
2 comentários:
_ talvez um pão de forma, mas sem casca. para podermos discernir entre o pão certo a se colocar em cada respectivo pote. o pior, ou melhor, é o esbarrar que acontece com a mesma freqüência que espirros. aliás as duas coisas se assemelham: a] as duas, quando não lhe pertencem, lhe incomodam. b] as pessoas sorriem e lhe desejam saúde APENAS por educação (podendo ser re-adaptada para 'tolerância'). c] se tiver alguém no lugar errado, na hora errada, a situação fica bem melequenta.
Encontrei um pão desses no arroz aqui de casa também levei um susto , e acabei jogando fora o pão , minha mãe quis me matar rsra , mas eu não sabia gente.
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